domingo, 1 de julho de 2018

Terceira parte do romance Aparições e mineirices do Isidoro


   Capítulo – 03
   O sumiço do Tião

    A conversa estava boa, mas Manuel preferiu ir cuidar da vida. Guardou o tonel de cachaça atrás do balcão e foi preparar uns quitutes para mais tarde, quando o frio apertasse. Na mesa, o assunto tomou outro rumo, mas o cabra do Tião “boca-de-fogo” parecia não conseguir esquecer os diamantes e a possibilidade de encontrar o guardado do escravo Isidoro e botar as pernas no trecho pra nunca mais voltar.
   Por trás daquele jeitão espalhafatoso, o sujeito era mais esperto do que se podia imaginar. O danado não ia se desembestar da tal Rio de Janeiro simplesmente para conhecer uns parentes num fim de mundo daquele que era Curralin, não. Ali tinha coisa e Remundão já estava desconfiado.
   Assim que o Manuel fechou o boteco, Tião saiu meio cabreiro, como se quisesse despachar os amigos sem delonga. Tratou logo de se desculpar dizendo que precisava chegar mais cedo na casa dos parentes e desapareceu na noite. Manuel também, aproveitando a deixa do amigo, se imbicou pela ruela escura e foi-se embora, deixando Zezito e Remundão para trás.
   - Que  é  que  tu   matutando  aí,  hein,  Remundão? - Perguntou o Zezito vendo o amigo ressabiado.
   - Sei não, viu? Mas esse Tião tá com intenção meio torta. - Murmurou ele metendo uma guimba de cigarro na boca e dando uma baforada tão larga que por pouco  a  brasa  não  lhe  queimou  a  ponta  do  bigode. - Tem caroço nesse angu e eu num gosto nadica disso.
   - Ocê acha que ele tá de mutrêta, é?
   - E num tá? Porque alguém com tanta nota de dinheiro novinho, novinho ia querer ficar assuntando aí esse trem de diamante?
   - Bem que eu fiquei acabrunhado coêsse cabra da peste... xêi de lero-lero e coisa e tal, mas ele tava meszé de butuca nos diamante. - Confessou Zezito tomando uma decisão: - Vou atrás dele só pra ispiá se foi’mbora mesmo.
   - Boa ideia, homem. Vamos dar uma espiada lá pelas banda do chafariz.
   E escondidos pela sombra da noite, lá se foram os dois ladeira abaixo até a praça da capela de Santo Antônio, onde ficava o chafariz. Estavam certos de que Tião “boca-de-fogo” estava por ali de espreita, observando o cruzeiro do Isidoro no alto da serra. Aquele era o melhor ponto do vilarejo para ver o lugar onde estava fincado o cruzeiro e o candeeiro misterioso.
   Bastou uma rápida olhadela em volta para descobrirem o cabra sentado à sombra do mangueirão, com o olho fincado na direção da serra.
   Remundão e Zezito ficaram à espreita junto à porta lateral da capela, até que Tião fincou pé na estrada em direção à casa dos tais parentes.
   - Eu num disse que esse cabra tava de butuca nos diamantes do Isidoro? - Disse Zé.
   - S’impolga não, homem. Tanta gente já num se meteu a valente e na hora de dar o bote bambeou das pernas com medo?
   - Mas esse daí é esperto por dimais da conta, sô e vai acabar fazeno besteira.
   Remundão não tinha dúvidas que o amigo estava com a razão, porém, ele até que torcia para que o “boca-de-fogo” cismasse de ir atrás dos diamantes do Isidoro. Ia tomar um baita susto, que o coitado era capaz de desaparecer de Curralin e nunca mais olhar pra trás.
   Para muitos, a história do escravo Isidoro era apenas uma crendice, mas Remundão sabia exatamente o que significava o medo de quem a conhecia. Certa vez, juntou uns apetrechos e se imbicou serra acima no meio da noite para tirar de letra a conversa descabida sobre o candeeiro.
   Chegou ao pé do cruzeiro e foi logo mijando no buraco da pedra para descobrir a fenda por onde os diamantes eram jogados pelo escravo. A urina escorreu aqui, ali, passou pra outra pedra e acabou caindo no fundo de uma grota logo abaixo. 
   - Intão  é   que  ocês  esconde  né,  suas  danadinhas? - Murmurou triunfante pra si mesmo.
   Durante horas a fio, Remundão cavou o buraco até ver o  brilho cintilante  das  pedras  brotarem  no chão. Passou a mão no lampião e toda vez que se aproximava do buraco, o danado apagava.
   - Êita diacho de luz que não para acesa, sô. - Resmungou pra si. - Vô levar ocês é no escuro mesmo.
   Sapecou a mão no buraco e mais que depressa, encheu o bornal com as pedrinhas brilhantes. Era tanto diamante que não tinha mais lugar onde enfiar. Juntou tudo e desembestou serra abaixo numa passada só. Assim que chegou em casa apalpou o bornal sorridente.
   - Ah seu Isidoro, num vai ser um assombraçãozinho que nem que ocê que num vai deixar eu botá as mão nessas pedrinha não.
   Enfiou a mão no bornal e quase teve um troço ao perceber que o mesmo estava cheio de terra. Uma baita tremedeira tomou conta do coitado que sem pensar duas vezes, chispou pra capela de Santo Antonio, só saindo de lá quando o sol já estava bem alto.  
   Depois disso, felizmente os tempos eram outros e Remundão se aquietou de vez depois daquela noite. Ninguém sabia ao certo o motivo para tal mudança, mas numa coisa todos concordavam, Remundão havia se tornado um homem sério e respeitador desde então. Deixou de apoquentar as ideia com pensamento torto e nem toma partido dos problemas que não carecem de sua atenção. Mas isso já é outros quinhentos e ninguém mais se lembrava do passado duvidoso do velho Remundão. Menos ele, claro, que ainda sentia o gosto amargo das lembranças e um fantasma misterioso que nunca deixou de assombrá-lo pela vida afora.
   Com o olhar perdido por onde Tião havia se escafedido, Remundão teve a sensação de que mais alguém os espreitava na praça do mangueirão e, achou melhor os dois caçarem o rumo de casa.
   No dia seguinte, Manuel estranhou o sumiço de “boca-de-fogo”, que até o final da tarde não tinha dado o ar da graça em seu boteco. Alguma coisa o cabra havia aprontado.
   - Será que algum jagunço se estranhou com ele nesses matão por   afora  e  acabou  espetando  o  cabra? - Atinou Chicão, um dos fregueses do boteco.
   - Larga de sê azarão, sô. Vai vê ele tá por aí curando a ressaca de ontem. - Disse outro.
   - Sei não, viu. Cabra abusado que nem esse, num delonga muito por essas terra não. Oia  ucotô te falano. - Insistiu Chicão bebericando uma pinga curada com erva amargosa.
   - Ocês tão é de prosa errada. Tem base não. Num vai demorá pro Tião entrar por essa porta cheio de banca e tomá as pinga dele. - Disse Manuel já preocupado com o sumiço do “boca-de-fogo”, afinal de contas, um freguês com o bolso rechonchudo de notas novinhas daquele jeito, não podia sumir assim de repente.
   O certo era que prosa vai, prosa vem, chegaram Remundão e Zezito e ninguém sabia onde o cabra tinha se metido.
   - Vai vê, o estrambelhado voltou para o tar de Ridijaneiro, num é mesm? - Especulou um dos fregueses.
   - Eu acho é que ele foi se aconchegá nos braços de dona   Ambrozina   e    com   vergonha   de   aparecer. - Zombou outro.  
   - S’impolga não, gente. Ele deve tá por aí mesmo com os parentes.
   - É isso mesmo. - Concordou Manuel pra encerrar a conversa. - Ele deve ter ficado lá na casa dos parente dele. Logo, logo ele aparece por aqui.
   Apesar de mudarem de assunto, num lugar como Curralin nada passava despercebido. Os futriqueiros de plantão só não queriam dar muito na vista que quase não se aguentavam no desassossego de não saber onde o cabra do Tião tinha se metido.
   Remundão e Zezito tinham uma leve desconfiança de onde o caboclo tinha ido parar, mas preferiram ficar de boca fechada para não atinar ainda mais os miolos dos outros. Podiam estar enganados, por isso o melhor era esperar que o cabra desse notícia.
   Apesar da conversa no dia anterior e o sumiço do “boca-de-fogo” até àquela hora, não significava que ele tinha ido desafiar os mistérios do candeeiro do Isidoro. O fato é que mais cedo ou mais tarde ele não resistiria a tentação dos diamantes e acabaria apeando no alto do cruzeiro da serra. Quanto a isso, Remundão e o Zezito não tinham a menor dúvida. Mas, fazer o quê? O cabra quando apoquenta as ideia na cachola, não há santo que o faça dar pra trás. Sabendo disso, o melhor que os dois podiam fazer àquela hora, era esquecer o assunto e tomarem sua amargosa sossegados, torcendo para que o desmiolado do Tião não tivesse perdido o juízo de vez e se embrenhado serra acima, atrás dos diamantes.                  
   Já passava das onze horas, quando Manuel dispensou o último cliente e baixou as portas do boteco. Sem se dar conta de que não havia mais ninguém nas ruas, caminhou tranquilamente balançando o corpanzil flácido até chegar a praça do mangueirão, quando atinou que o velho chafariz não estava jorrando. Ressabiado olhou para os lados e só então percebeu que estava sozinho. Sem saber por quê, bateu os olhos no alto da serra onde ficava o cruzeiro do Isidoro. Um arrepio cortou-lhe a espinha de cima a baixo e um frio na barriga quase fez com que ele molhasse as calças. Pela primeira vez não viu o candeeiro aceso como todas as noites. Apavorado, fez o que parecia ser o sinal da cruz, sentindo uma tremedeira dos diabos nas pernas. O candeeiro do Isidoro apagado àquela hora e o chafariz seco, não era boa coisa.
   Manuel quase despinguelou ladeira abaixo no meio da escuridão, se não fosse um estalo que ouviu às suas costas. O cabra ficou tão assustado, mas tão assustado que não conseguia arredar pé do lugar. Foi preciso muito esforço para não cair duro ali mesmo. Com o canto dos olhos foi se virando devagarzinho na direção do barulho, até deparar com um vulto se aproximando pelos cantos, coberto pelas sombras.
   De repente, uma chama de luz se acendeu e Manuel reconheceu logo o candeeiro do Isidoro pendurado por uma corrente, balançando nas mãos daquela “coisa”. Rapaz, as pernas do cabra começaram a fraquejar de um jeito, que num teve santo que não foi chamado àquela hora. E pra aumentar ainda mais sua desgraceira, viu as correntes prendendo os pés daquela “coisa ruim”, que se arrastavam pelo chão enquanto caminhava. Aí que a coisa desandou pro lado do Manuel e não deu outra. Com santo ou sem santo, o cabra desembestou numa carreira só morro abaixo e quando deu por si, já tava era pra lá de longe.  

                                                                                                                       Continua na próxima semana!   


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