O
sumiço do Tião
Por trás daquele jeitão espalhafatoso, o
sujeito era mais esperto do que se podia imaginar. O danado não ia se
desembestar da tal Rio de Janeiro simplesmente para conhecer uns parentes num
fim de mundo daquele que era Curralin, não. Ali tinha coisa e Remundão já
estava desconfiado.
Assim que o Manuel fechou o boteco, Tião
saiu meio cabreiro, como se quisesse despachar os amigos sem delonga. Tratou
logo de se desculpar dizendo que precisava chegar mais cedo na casa dos
parentes e desapareceu na noite. Manuel também, aproveitando a deixa do amigo,
se imbicou pela ruela escura e foi-se embora, deixando Zezito e Remundão para
trás.
- Que é que tu tá matutando aí, hein,
Remundão? - Perguntou o Zezito vendo o
amigo ressabiado.
- Sei não, viu? Mas esse Tião tá com
intenção meio torta. - Murmurou ele metendo uma guimba de cigarro na boca e
dando uma baforada tão larga que por pouco a brasa
não lhe queimou a ponta do bigode. - Tem caroço nesse angu e eu num gosto
nadica disso.
- Ocê acha que ele tá de mutrêta, é?
- E num tá? Porque alguém com tanta nota de
dinheiro novinho, novinho ia querer ficar assuntando aí esse trem de diamante?
- Bem que eu fiquei acabrunhado coêsse cabra
da peste... xêi de lero-lero e coisa e tal, mas ele tava meszé de butuca nos
diamante. - Confessou Zezito tomando uma decisão: - Vou atrás dele só pra ispiá
se foi’mbora mesmo.
- Boa ideia, homem. Vamos dar uma espiada lá
pelas banda do chafariz.
E escondidos pela sombra da noite, lá se
foram os dois ladeira abaixo até a praça da capela de Santo Antônio, onde
ficava o chafariz. Estavam certos de que Tião “boca-de-fogo” estava por ali de
espreita, observando o cruzeiro do Isidoro no alto da serra. Aquele era o
melhor ponto do vilarejo para ver o lugar onde estava fincado o cruzeiro e o
candeeiro misterioso.
Bastou uma rápida olhadela em volta para
descobrirem o cabra sentado à sombra do mangueirão, com o olho fincado na
direção da serra.
Remundão e Zezito ficaram à espreita junto à
porta lateral da capela, até que Tião fincou pé na estrada em direção à casa
dos tais parentes.
- Eu num disse que esse cabra tava de butuca
nos diamantes do Isidoro? - Disse Zé.
- S’impolga não, homem. Tanta gente já num
se meteu a valente e na hora de dar o bote bambeou das pernas com medo?
- Mas esse daí é esperto por dimais da
conta, sô e vai acabar fazeno besteira.
Remundão não tinha dúvidas que o amigo
estava com a razão, porém, ele até que torcia para que o “boca-de-fogo” cismasse
de ir atrás dos diamantes do Isidoro. Ia tomar um baita susto, que o coitado
era capaz de desaparecer de Curralin e nunca mais olhar pra trás.
Para muitos, a história do escravo Isidoro
era apenas uma crendice, mas Remundão sabia exatamente o que significava o medo
de quem a conhecia. Certa vez, juntou uns apetrechos e se imbicou serra acima
no meio da noite para tirar de letra a conversa descabida sobre o candeeiro.
Chegou ao pé do cruzeiro e foi logo mijando
no buraco da pedra para descobrir a fenda por onde os diamantes eram jogados
pelo escravo. A urina escorreu aqui, ali, passou pra outra pedra e acabou
caindo no fundo de uma grota logo abaixo.
- Intão é aí que ocês esconde
né, suas danadinhas?
- Murmurou triunfante pra si mesmo.
Durante horas a fio, Remundão cavou o buraco
até ver o brilho cintilante das pedras brotarem no chão. Passou a mão no lampião e toda vez
que se aproximava do buraco, o danado apagava.
- Êita diacho de luz que não para acesa, sô.
- Resmungou pra si. - Vô levar ocês é no escuro mesmo.
Sapecou a mão no buraco e mais que depressa,
encheu o bornal com as pedrinhas brilhantes. Era tanto diamante que não tinha
mais lugar onde enfiar. Juntou tudo e desembestou serra abaixo numa passada só.
Assim que chegou em casa apalpou o bornal sorridente.
- Ah seu Isidoro, num vai ser um assombraçãozinho
que nem que ocê que num vai deixar eu botá as mão nessas pedrinha não.
Enfiou a mão no bornal e quase teve um troço
ao perceber que o mesmo estava cheio de terra. Uma baita tremedeira tomou conta
do coitado que sem pensar duas vezes, chispou pra capela de Santo Antonio, só
saindo de lá quando o sol já estava bem alto.
Depois disso, felizmente os tempos eram
outros e Remundão se aquietou de vez depois daquela noite. Ninguém sabia ao
certo o motivo para tal mudança, mas numa coisa todos concordavam, Remundão
havia se tornado um homem sério e respeitador desde então. Deixou de apoquentar
as ideia com pensamento torto e nem toma partido dos problemas que não carecem
de sua atenção. Mas isso já é outros quinhentos e ninguém mais se lembrava do
passado duvidoso do velho Remundão. Menos ele, claro, que ainda sentia o gosto
amargo das lembranças e um fantasma misterioso que nunca deixou de assombrá-lo pela
vida afora.
Com o olhar perdido por onde Tião havia se
escafedido, Remundão teve a sensação de que mais alguém os espreitava na praça
do mangueirão e, achou melhor os dois caçarem o rumo de casa.
No dia seguinte, Manuel estranhou o sumiço
de “boca-de-fogo”, que até o final da tarde não tinha dado o ar da graça em seu
boteco. Alguma coisa o cabra havia aprontado.
- Será que algum jagunço se estranhou com
ele nesses matão por aí afora e
acabou espetando o cabra?
- Atinou Chicão, um dos fregueses do boteco.
- Larga de sê azarão, sô. Vai vê ele tá por
aí curando a ressaca de ontem. - Disse outro.
- Sei não, viu. Cabra abusado que nem esse,
num delonga muito por essas terra não. Oia
ucotô te falano. - Insistiu Chicão bebericando uma pinga curada com erva
amargosa.
- Ocês tão é de prosa errada. Tem base não. Num
vai demorá pro Tião entrar por essa porta cheio de banca e tomá as pinga dele. -
Disse Manuel já preocupado com o sumiço do “boca-de-fogo”, afinal de contas, um
freguês com o bolso rechonchudo de notas novinhas daquele jeito, não podia
sumir assim de repente.
O certo era que prosa vai, prosa vem,
chegaram Remundão e Zezito e ninguém sabia onde o cabra tinha se metido.
- Vai vê, o estrambelhado voltou para o tar
de Ridijaneiro, num é mesm? - Especulou um dos fregueses.
- Eu acho é que ele foi se aconchegá nos
braços de dona Ambrozina e tá com vergonha de aparecer.
- Zombou outro.
- S’impolga não, gente. Ele deve tá por aí
mesmo com os parentes.
- É isso mesmo. - Concordou Manuel pra
encerrar a conversa. - Ele deve ter ficado lá na casa dos parente dele. Logo,
logo ele aparece por aqui.
Apesar de mudarem de assunto, num lugar como
Curralin nada passava despercebido. Os futriqueiros de plantão só não queriam
dar muito na vista que quase não se aguentavam no desassossego de não saber
onde o cabra do Tião tinha se metido.
Remundão e Zezito tinham uma leve
desconfiança de onde o caboclo tinha ido parar, mas preferiram ficar de boca
fechada para não atinar ainda mais os miolos dos outros. Podiam estar
enganados, por isso o melhor era esperar que o cabra desse notícia.
Apesar da conversa no dia anterior e o
sumiço do “boca-de-fogo” até àquela hora, não significava que ele tinha ido
desafiar os mistérios do candeeiro do Isidoro. O fato é que mais cedo ou mais
tarde ele não resistiria a tentação dos diamantes e acabaria apeando no alto do
cruzeiro da serra. Quanto a isso, Remundão e o Zezito não tinham a menor
dúvida. Mas, fazer o quê? O cabra quando apoquenta as ideia na cachola, não há
santo que o faça dar pra trás. Sabendo disso, o melhor que os dois podiam fazer
àquela hora, era esquecer o assunto e tomarem sua amargosa sossegados, torcendo
para que o desmiolado do Tião não tivesse perdido o juízo de vez e se
embrenhado serra acima, atrás dos diamantes.
Já passava das onze horas, quando Manuel
dispensou o último cliente e baixou as portas do boteco. Sem se dar conta de
que não havia mais ninguém nas ruas, caminhou tranquilamente balançando o
corpanzil flácido até chegar a praça do mangueirão, quando atinou que o velho
chafariz não estava jorrando. Ressabiado olhou para os lados e só então
percebeu que estava sozinho. Sem saber por quê, bateu os olhos no alto da serra
onde ficava o cruzeiro do Isidoro. Um arrepio cortou-lhe a espinha de cima a
baixo e um frio na barriga quase fez com que ele molhasse as calças. Pela
primeira vez não viu o candeeiro aceso como todas as noites. Apavorado, fez o
que parecia ser o sinal da cruz, sentindo uma tremedeira dos diabos nas pernas.
O candeeiro do Isidoro apagado àquela hora e o chafariz seco, não era boa
coisa.
Manuel quase despinguelou ladeira abaixo no
meio da escuridão, se não fosse um estalo que ouviu às suas costas. O cabra
ficou tão assustado, mas tão assustado que não conseguia arredar pé do lugar.
Foi preciso muito esforço para não cair duro ali mesmo. Com o canto dos olhos
foi se virando devagarzinho na direção do barulho, até deparar com um vulto se
aproximando pelos cantos, coberto pelas sombras.
De repente, uma chama de luz se acendeu e Manuel
reconheceu logo o candeeiro do Isidoro pendurado por uma corrente, balançando
nas mãos daquela “coisa”. Rapaz, as pernas do cabra começaram a fraquejar de um
jeito, que num teve santo que não foi chamado àquela hora. E pra aumentar ainda
mais sua desgraceira, viu as correntes prendendo os pés daquela “coisa ruim”,
que se arrastavam pelo chão enquanto caminhava. Aí que a coisa desandou pro
lado do Manuel e não deu outra. Com santo ou sem santo, o cabra desembestou
numa carreira só morro abaixo e quando deu por si, já tava era pra lá de longe.
Continua na próxima semana!
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