Herói por
acaso
As horas iam passando, passando e não é que o “boca-de-fogo”
ficou tão bêbado que já nem lembrava mais do tal do assombração? Pra falar a
verdade, ninguém mais se lembrava do desafio que o cabra havia feito. O povo
tava que não aguentava mais de tanto beber, mas enquanto a batucada não parava
de bumbar pelos becos de Curralin, a
danada da cachaça continuava descendo goela abaixo acompanhada do velho e
tradicional torresmo do Manuel.
Sem perder tempo, o dono do boteco foi logo
abrindo o lance das apostas. Quem botava quem pra correr? “Boca-de-fogo” ou o
escravo Isidoro? O páreo tava difícil, mas o difícil mesmo era encontrar alguém
que apostasse contra o Isidoro. Todos já tinham ouvido falar do escravo e não
acreditavam que Tião tivesse coragem para subir a serra durante a madrugada e
tirar os diamantes do fantasma, mas, enfim, o certo era que ninguém parecia muito
preocupado em quem ia ganhar ou perder aquela aposta. O importante era festejar
sem qualquer compromisso.
Lá pelas tantas, alguém lembrou Tião da
aposta. Mais do que depressa, o danado foi dando um jeitinho daqui, jeitinho
dalí e desapareceu sem que ninguém percebesse.
Assim que ele saiu, um cabra entrou no
boteco afobado e gritando que nem um maluco.
- Ladrão, ladrão!!.
- Ladrão? Quem?
- Não, não, não! Aqui dentro não. Tem ladrão
lá fora!
- Diga logo onde, seu cabra da peste!
- Na capela! Tem ladrão na capela do padre Benito!
- Gaguejou o caboclo esbaforido.
Num deu outra. Todo mundo se debandou ladeira
abaixo em direção à capela, como se o próprio boteco do Manuel tivesse pegando
fogo.
Tião, que já se adiantara alguns metros,
ouviu todo aquele alarido provocado pelo corre-corre e olhou para trás assustado.
Quando viu a multidão correndo desenfreada em sua direção não pensou duas vezes.
Picou a mula ladeira abaixo.
- Meu Deus, meu deusinho, me ajuda! É agora
que eu tô morto! - Gritava ele enquanto fugia da multidão pelos becos de pedra.
Pela primeira vez em sua vida pediu ajuda a todos os santos que conhecia e até
os que nunca ouvira falar. Era ele clamando na frente e o povão gritando atrás.
Assim que chegou à praça, viu a porta da
capela entreaberta e não pensou duas vezes, se embicou pra dentro sem olhar para trás.
- Obrigado, meu Deus! Foi tu que me abriu
essa porta. - Agradeceu aliviado, sentindo-se mais seguro. Coitado! Nem
imaginava que acabara de entrar na maior enrascada de sua vida. Se a coisa já tava ruim pra ele, agora ficava ainda
pior. Tinha enfiado a cabeça na boca do leão sem saber.
Os ladrões, assim que ouviram o barulho da
porta, se esconderam na sacristia e ficaram de butuca.
- O que foi isso? - Cochichou um.
- Sei não... parece que chegou alguém.
- Vá lá e dê uma olhada.
- Por que eu?
- Vai logo! - Mandou o que parecia ser o
líder, empurrando o comparsa.
Tião “boca-de-fogo” ouviu o cochicho dos
dois e tremendo mais que vara verde, correu para o confessionário, onde se escondeu.
- Só pode ser o cabra da peste do tal do Isidoro
que veio me assombrar. Por que é que eu fui desafiar esse fantasma dos inferno?
- Lamuriou ele enfiando a cabeça entre os braços e se encolhendo ainda mais no
pequeno cubículo de madeira entrelaçada.
Do lado de fora da capela, a multidão ia se ajuntando
e em poucos minutos a praça tava apinhada de gente querendo salvar a capela das
mãos dos bandidos, sem ao menos imaginar que Tião “boca-de-fogo” tinha se
escondido lá dentro.
- Vamo pegá esse cabra safado!! - Gritou
alguém.
- Num deixe esse ladrãozinho duma figa
fugir!! - Reforçou outro.
- Ladrão?? Eu??? Mas eu num roubei nada de
ninguém, ora. - Pensou Tião escondido no confessionário, sem entender. - Mas
essa gente tá é danada de brava comigo, sô! Já tão me chamando até de ladrão...
agora é que eu tô na bosta mesmo.
- Vamo arrancá esse infeliz da capela à
força e dá uma sova nele, pessoal!!
- Cuidado que ele deve de ser muito pirigoso
e pode tá armado!! - Gritou alguém provocando um corre-corre, um
esconde-esconde dos diabo para se protegerem de um possível tiroteio.
- Se o Tião tivesse aqui, ele arrancava esse
cabra de dentro da capela na unha. - Disse Manuel escondido atrás do chafariz.
- S’impolga não, Manuel. - Retrucou Remundão
sem desviar os olhos da capela. - Esse Tião só tem é lábia. Foi o primeiro a dá
no pé.
- Não, o Tião não! Ele é cabra pra lá de
macho e ia rodá a baiana e tirá esse sem vergonha de dentro da capela no tapa.
- Vai
acreditando, hein Manuel?
- Pode arcreditá, Remundão. Eu sei o que tô
falano, homi.
Enquanto os dois discutiam na praça, os
ladrões cochichavam, cada vez mais assustados, pensando numa maneira de fugir
da capela.
- Eu te disse que roubar igreja dava azar,
mas não, você não me ouviu e agora... - Censurou um deles.
- Cala a boca! Eu mandei você olhar que
barulho foi aquele e você tá aí até agora só reclamando que nem uma velhinha.
- Você sabia que essas igrejas antigas estão
cheias de assombração?
- Deixa de ser medroso e vai logo olhar
antes que eu te jogue lá fora.
- Tá bom, tá bom. - Resmungou o infeliz
tateando na escuridão. - Mas que tem assombração nessas casas velhas, ah isso
tem.
Depois de olhar por todo o salão da capela,
o ladrão não conseguiu distinguir ninguém no meio a escuridão e quando se
preparava para voltar para junto do comparsa, ouviu um baque surdo e um
resmungo. “Boca-de-fogo” tentou se levantar e bateu com a cabeça no teto do
confessionário. O ladrão, mesmo sem enxergar um palmo a sua frente, correu em
direção à sacristia tropeçando em tudo que se encontrava pelo caminho.
- Mas que diabos acha que está fazendo, seu
imbecil?!
- Eu te disse que tinha assombração aqui na igreja...
eu te disse!! - Gaguejou o comparsa apavorado.
- Que assombração?
- Eu vi... tava sentado no banco com uma
coisa branca na cabeça.
- Tem certeza de que não era o padre?
- Tenho sim, era um assombração horroroso
com umas coisa assim na cabeça. - Insistiu o infeliz todo esbaforido. - Eu te
disse que era pecado roubar igreja. Vamo embora daqui!
Tião “boca-de-fogo” estava em pânico com
toda aquela confusão no escuro. Pensava ser o fantasma do Isidoro lhe assombrando.
- Mas, por que diacho fui desafiar o cabra
do Isidoro? Você é mesmo muito burro, Tião. Devia ter ficado quieto no seu
canto, mas não, tinha que desafiar o fantasma. - Resmungava o infeliz ouvindo
os gritos que vinham de fora. _ E como se num bastasse, esse povaréu todo lá
fora, querendo me esfolar vivo.
Tião não sabia o que era pior: enfrentar a
ira do escravo Isidoro ou se acovardar diante do povo de Curralin.
- Dos males o menor. - Pensou. Afinal de
contas, levar os outros no bico era com ele mesmo, mas tinha que estar muito
vivo pra cair na sua lábia, o que não era o caso do Isidoro, ainda mais que o assombração
do cabra da peste tinha vindo acompanhado pra acertar as contas com ele.
- É melhor cair fora daqui enquanto é tempo.
Para o azar de Tião, os ladrões estavam tão
assustados quanto ele e pareciam pensar em fugir da mesma forma. Meu Deus, que
confusão. Foi um verdadeiro furdunço de
tromba-tromba e gritos na escuridão da capela.
Ao ouvir a barulhada, a multidão do lado de
fora se calou ansiosa, sem saber o que acontecia no interior da igreja. Estavam
mais apavorados do que os cabra dentro da capela e olhavam angustiados à
procura da polícia, ou melhor, do único guardinha que tomava conta de todo o
lugarejo e só Deus sabia onde ele estaria dormindo àquela hora.
De repente a porta se abriu violentamente e
os dois bandidos praticamente caíram no lado de fora.
- Fantasma! Fantasma!! - Gritavam os ladrões
assustados.
Tião vendo a claridade da porta e ouvindo aquela
gritaria, saiu tão rápido como um peido, quase ao mesmo tempo que os meliantes
e deparou com eles sendo agarrados pelos moradores. Sem entender o que se
passava, tentou se esquivar da multidão que vinha pra cima dele, mas logo também
foi pego.
- Não! Não! Eu não fiz nada, por favor. Eu
prometo que nunca mais desafio esse tal de Isidoro e...
- É ele!!! É ele!!! - Gritou alguém e Tião
quase se borrou. Zezito o agarrou, enquanto os outros o ajudavam a levantá-lo
no ar.
- É o nosso herói. O cabra mais macho que já
apareceu por essas banda. Botô os bandidos pra fora da capela. - Gritou Manuel.
- Botei?!?
- Ele é o nosso herói!! - Gritaram todos.
- Eu não te disse, Remundão? Só mesmo o Tião
pra acabar com a farra desses cabra da peste desrespeitoso. - Falou Manuel se
juntando aos amigos, enquanto o povo levava Tião carregado para o bar.
- S’impolga não, Manuel. Essa história tá
muito estranha.
- Que nada, Remundão. Tião é cabra pra lá de
arretado. O homi é macho mermo!
- Sei não, viu.
- Oia a cara dele. Ta inté assustado com
tanta festança.
- Tomara. – Concordou Remundão coçando o
queixo desconfiado.
Minutos depois, Tião não cansava de repetir
a mesma história que inventou sobre como pegou os bandidos dentro da igreja.
- Então eu apercebi que os danado tinha
entrado na igreja e sem perder tempo, meti os peito na porta e pus a tranca
abaixo. Quando vi no meio da escuridão aquelas armas apontadas pra mim, não
pensei duas vezes. Dei um salto mortal por cima dos bancos e caí por detrás dos
dois. Com um golpe certeiro de “jujits”, desarmei os cabra antes que eles
atirasse...
Enquanto Tião destrinchava sua história
maluca, Dona Ambrosina se enlaçou em seu pescoço, toda cheia de mequetreche. A mulher parecia estar com
fogo nas entranha de tanto que se esfregava em “boca-de-fogo”.
- Mais uma pra
cair na lábia desse cabra
da peste. - Observou Remundão.
- Mas o sinhô num aquerdita mesmo nas
façanha do Tião, héin? Nem veno com esses zói que tá plantado na sua cara que a
terra há de cumê, né? - Defendeu Manuel.
- S’impolga não, Manuel, que essa história
ainda vai dar muito pano pra manga.
- Tião enfrentou os cabra sozinho na capela do
padre Benito e tu ainda tem dúvida da macheza dele?
- Tá bom, tá bom, Manuel. Vamos deixar como
está.
- Por falá em corage, condé que o “boca-de-fogo”
vai subir a serra e enfrentar o escravo Isidoro? - Perguntou Zezito.
A pergunta do Zé caiu como uma bomba no boteco
do Manuel e o silêncio sepulcral que se fez de repente, pegou Tião de calça
curta. Coitado do infeliz, por essa ele não esperava. Logo agora que o mal-entendido
com os bandidos o havia transformado no herói do lugar, tinha que aparecer o estrupício do Zezito pra lembrar do
desafio que ele fizera contra o bendito escravo.
- Ô xente, vamo dá um desconto pro homi
aqui, uai. Afinal, ele enfrentou sozinho os bandido e salvou a capela do padre
Benito. - Disse Manuel percebendo o aperto de Tião e todos olharam para ele com
cara de tacho como se esperassem uma resposta. Mas o infeliz perdera até as
forças para abrir a boca. Sorte dele estar em Curralin, lugar de gente boa,
simples, porém sábia. Quando a gente acha que a vaca tá indo pro brejo, olha a
salvação chegando. Antes mesmo que o “boca-de-fogo” conseguisse abrir a boca, Dona
Ambrosina se adiantou e foi logo dizendo:
- É isso mesm! Inquanto ocês ficaro tudo do
lado de fora da capela do padre Benito isperano os bandido saí, Tião intrô lá
sozin e dispinguelô supapo pra tudo que é lado. E agora ocês num vai dá
discanso pro homi nem hoje que é feriado? Mais qui bissurdo!! Ocês num tem é
coração, vice?
- E tem mais, amanhã vai ser mais
interessante, pois é sexta feira 13. - Disse Tião tentando ganhar tempo sem
perder a pose.
- Mas... oquequiss tem a ver com o escravo
Isidoro? - Perguntou Zezito.
- E num é dia de azar? É na sexta feira 13
que os assombração fica tudo ouriçado, ué. E eu, Tião “boca-de-fogo”, vô botá o
danado pra correr de volta pra tumba, viu seus cambada de cabra medroso? -
Gritou Tião, sabendo que ainda ia se arrepender do que acabara de falar, mas
não queria que desconfiassem de nada.
- E por que não? Assim dá mais tempo pra
gente tomar mais umas cachaça margosa, né pessoal? Ei, Manuel, tá esperando o
quê pra encher o copo vazio do nosso herói? - Gritou um caboclo encostado no
balcão e logo todo mundo já havia esquecido do tal desafio.
Dessa vez Tião escapou por um fio. Faltou
muito pouco para ele não dar com os burros n’água na frente de toda aquela
gente. Porém, ele não era cabra de se abalar assim tão facilmente não. Caboclo
vivido, cheio de maracutaias, tinha
sempre uma carta escondida na manga. Certamente ia dar um jeitinho de se sair
bem daquela enrascada que se metera.
Enquanto todos pareciam estar se divertindo
com sua bravura, o cabra saiu de fininho e foi até os fundos da pocilga do Manuel,
onde o mesmo espetava o garfo numas linguiças rosadas sobre a chapa quente. Remundão
ficava só de butuca. Sabia que tinha treta naquela prosa e ele ainda ia
descobrir.
Minutos depois, “boca-de-fogo” voltou de
mansinho, como quem não quer nada, tentando disfarçar para não chamar a atenção
sobre sua pessoa.
- Aí tem coisa... - Resmungou Remundão.
- Oquecocê disse?
- S’impolga não, Zé. Só tava aqui matutando
com os meus botões.
Assim que fechou a boca, Manuel se aproximou
de Ambrosina, disse-lhe alguma coisa ao pé do ouvido e saiu em seguida.
Remundão não perdeu tempo e saiu logo atrás.
- Ei, Manuel! - Chamou ele apertando o passo
para se aproximar do amigo.
- Quêcocê tá fazendo aqui, homi de Deus?
- S’impolga não, Manuel. Só quero saber o quê
ocês dois tão tramando.
- Deixa de sê besta, sô. - Replicou o dono
do boteco meio desconfiado. - Tamo tramando nada não, homi. Só vou buscar umas
muda de roupa...
- A essa hora?!? Já tá quase amanhecendo...
- E é por isso mesmo. A missa na capela começa
bem cedinho e eu num posso ir assim maltrapio, né? - Justificou Manuel.
- E o que ocê e o Tião tavam tramando lá no
fundo do boteco?
- Tava tramando nada não, Remundão. Tião
tava querendo saber em que pé tava as aposta, uai. Só isso.
- Se é o que diz... - Respondeu desconfiado.
“S’impolga não, Remundão, nesse mato tem cachorro e tu ainda
vai descobrir quem é
o caçador”. - Pensou.
No dia seguinte quando tudo parecia estar
pronto para Tião subir a serra, um cabra baixinho e esquisito usando chapéu de
vaqueiro e uma arma que mais parecia um canhão, acompanhado por dois soldados
meio desajeitados entrou no boteco do Manuel e gritou:
- Atenção todo mundo! Quero saber tim-tim
por tim-tim essa história de cabra macho escarafunchar o cruzeiro do Isidoro. Ninguém
vai subir coisica nenhuma de serra até o cruzeiro do Isidoro.
- Mas delegado...
- Nada de mas, é ordem do prefeito. O
cruzeiro é patrimônio público histórico e quem descumprir vai pro xilindró.
- S’impolga não delegado, afinal o prefeito também
fez “apostinha” dele, uai. - Disse Remundão dando uma piscadela para os amigos.
- O prefeito? É mesmo? E como é tá o rateio?
- Perguntou o delegado em voz baixa, interessado.
- Dez por um contra o Tião.
- E ocês acham que ele tem coragem mesmo de
enfrentar o assombração do Isidoro?
- Ô doutô, dêxa eu aporveitá pra fazer uma
fezinha. Toma aqui minha parte. - Disse um dos soldados estendendo a mão cheia
de notas amassadas.
- Quê que é isso, soldado? Tá querendo ser
preso também?
- Se inté o sô prefeito já agarantiu sua fezinha, uai!? - Retrucou o subordinado.
- Deixa de prosa soldado e vá prender esse
tal de Tião.
- Muito bem, cambada! Cês tem cinco segundos
para me dizer onde está esse tal de Tião ou eu vô levá todo mundo pro xilindró.
- Gritou o soldado todo petulante.
- Mas que diabos
acha que tá fazendo, soldado?
– Interpelou o delegado.
- É que eu vi isso num filme, chefe e
rapidim o cabra apareceu.
- Era só o que me faltava.
- Por falar nisso, cadê o “boca-de-fogo” que
inté agora num apareceu? - Perguntou Manuel olhando em volta.
- Apareceu não? Dê uma olhada no mictório,
soldado!
- Miqui o quê?
- Mictório, soldado. “Casinha”, banheiro,
entendeu homem de Deus?
- Sim, sinhô! - Respondeu o soldado dando
mixôxo.
- Hei delegado, o Manuel tem razão, Tião
ainda não deu o ar da graça aqui não!
- Tem certeza disso, cidadão? - Perguntou o
soldado peitando o cabra que falara.
- Sim senhor.
- Hei chefe, posso dar um jeito nisso e...
- Vamo embora, soldado. - Disse o delegado deixando
o boteco do Manuel sem levar Tião “boca-de-fogo”, que até aquela hora não tinha
dado sinal de vida. Mas prometeu prendê-lo antes que subisse a serra em busca
dos diamantes do Isidoro.
Continua na próxima semana!!!!
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