domingo, 15 de julho de 2018

Quinta parte do romance "Aparições e mineirices do Isidoro"


   
   Capítulo – 05
   Herói por acaso
  
    As horas iam passando, passando e não é que o “boca-de-fogo” ficou tão bêbado que já nem lembrava mais do tal do assombração? Pra falar a verdade, ninguém mais se lembrava do desafio que o cabra havia feito. O povo tava que não aguentava mais de tanto beber, mas enquanto a batucada não parava de bumbar pelos becos de Curralin, a danada da cachaça continuava descendo goela abaixo acompanhada do velho e tradicional torresmo do Manuel.
   Sem perder tempo, o dono do boteco foi logo abrindo o lance das apostas. Quem botava quem pra correr? “Boca-de-fogo” ou o escravo Isidoro? O páreo tava difícil, mas o difícil mesmo era encontrar alguém que apostasse contra o Isidoro. Todos já tinham ouvido falar do escravo e não acreditavam que Tião tivesse coragem para subir a serra durante a madrugada e tirar os diamantes do fantasma, mas, enfim, o certo era que ninguém parecia muito preocupado em quem ia ganhar ou perder aquela aposta. O importante era festejar sem qualquer compromisso.
   Lá pelas tantas, alguém lembrou Tião da aposta. Mais do que depressa, o danado foi dando um jeitinho daqui, jeitinho dalí e desapareceu sem que ninguém percebesse.
   Assim que ele saiu, um cabra entrou no boteco afobado e gritando que nem um maluco.
   - Ladrão, ladrão!!.
   - Ladrão? Quem?
   - Não, não, não! Aqui dentro não. Tem ladrão lá fora!
   - Diga logo onde, seu cabra da peste!
   - Na capela! Tem ladrão na capela do   padre   Benito!  - Gaguejou o caboclo esbaforido.
   Num deu outra. Todo mundo se debandou ladeira abaixo em direção à capela, como se o próprio boteco do Manuel tivesse pegando fogo.
   Tião, que já se adiantara alguns metros, ouviu todo aquele alarido provocado pelo corre-corre e olhou para trás assustado. Quando viu a multidão correndo desenfreada em sua direção não pensou duas vezes. Picou a mula ladeira abaixo.
   - Meu Deus, meu deusinho, me ajuda! É agora que eu tô morto! - Gritava ele enquanto fugia da multidão pelos becos de pedra. Pela primeira vez em sua vida pediu ajuda a todos os santos que conhecia e até os que nunca ouvira falar. Era ele clamando na frente e o povão gritando atrás.
   Assim que chegou à praça, viu a porta da capela entreaberta e não pensou duas vezes, se embicou pra dentro sem olhar para trás.
   - Obrigado, meu Deus! Foi tu que me abriu essa porta. - Agradeceu aliviado, sentindo-se mais seguro. Coitado! Nem imaginava que acabara de entrar na maior enrascada de sua vida. Se a coisa já tava ruim pra ele, agora ficava ainda pior. Tinha enfiado a cabeça na boca do leão sem saber.
   Os ladrões, assim que ouviram o barulho da porta, se esconderam na sacristia e ficaram de butuca.
   - O que foi isso? - Cochichou um.
   - Sei não... parece que chegou alguém.
   - Vá lá e dê uma olhada.
   - Por que eu?
   - Vai logo! - Mandou o que parecia ser o líder, empurrando o comparsa.
   Tião “boca-de-fogo” ouviu o cochicho dos dois e tremendo mais que vara verde, correu para o confessionário, onde se escondeu.
   - Só pode ser o cabra da peste do tal do Isidoro que veio me assombrar. Por que é que eu fui desafiar esse fantasma dos inferno? - Lamuriou ele enfiando a cabeça entre os braços e se encolhendo ainda mais no pequeno cubículo de madeira entrelaçada.
   Do lado de fora da capela, a multidão ia se ajuntando e em poucos minutos a praça tava apinhada de gente querendo salvar a capela das mãos dos bandidos, sem ao menos imaginar que Tião “boca-de-fogo” tinha se escondido lá dentro.
   - Vamo pegá esse cabra safado!! - Gritou alguém.
   - Num deixe esse ladrãozinho duma figa fugir!! - Reforçou outro.
   - Ladrão?? Eu??? Mas eu num roubei nada de ninguém, ora. - Pensou Tião escondido no confessionário, sem entender. - Mas essa gente tá é danada de brava comigo, sô! Já tão me chamando até de ladrão... agora é que eu tô na bosta mesmo.
   - Vamo arrancá esse infeliz da capela à força e dá uma sova nele, pessoal!!
   - Cuidado que ele deve de ser muito pirigoso e pode tá armado!! - Gritou alguém provocando um corre-corre, um esconde-esconde dos diabo para se protegerem de um possível tiroteio.
   - Se o Tião tivesse aqui, ele arrancava esse cabra de dentro da capela na unha. - Disse Manuel escondido atrás do chafariz.
   - S’impolga não, Manuel. - Retrucou Remundão sem desviar os olhos da capela. - Esse Tião só tem é lábia. Foi o primeiro a dá no pé.
   - Não, o Tião não! Ele é cabra pra lá de macho e ia rodá a baiana e tirá esse sem vergonha de dentro da capela no tapa.
   - Vai acreditando, hein Manuel?
   - Pode arcreditá, Remundão. Eu sei o que tô falano, homi.       
   Enquanto os dois discutiam na praça, os ladrões cochichavam, cada vez mais assustados, pensando numa maneira de fugir da capela.
   - Eu te disse que roubar igreja dava azar, mas não, você não me ouviu e agora... - Censurou um deles.
   - Cala a boca! Eu mandei você olhar que barulho foi aquele e você tá aí até agora só reclamando que nem uma velhinha.
   - Você sabia que essas igrejas antigas estão cheias de assombração?
   - Deixa de ser medroso e vai logo olhar antes que eu te jogue lá fora.
   - Tá bom, tá bom. - Resmungou o infeliz tateando na escuridão. - Mas que tem assombração nessas casas velhas, ah isso tem.
   Depois de olhar por todo o salão da capela, o ladrão não conseguiu distinguir ninguém no meio a escuridão e quando se preparava para voltar para junto do comparsa, ouviu um baque surdo e um resmungo. “Boca-de-fogo” tentou se levantar e bateu com a cabeça no teto do confessionário. O ladrão, mesmo sem enxergar um palmo a sua frente, correu em direção à sacristia tropeçando em tudo que se encontrava pelo caminho.
   - Mas que diabos acha que está fazendo, seu imbecil?!
   - Eu te disse que tinha assombração aqui na igreja... eu te disse!! - Gaguejou o comparsa apavorado.
   - Que assombração?
   - Eu vi... tava sentado no banco com uma coisa branca na cabeça.
   - Tem certeza de que não era o padre?
   - Tenho sim, era um assombração horroroso com umas coisa assim na cabeça. - Insistiu o infeliz todo esbaforido. - Eu te disse que era pecado roubar igreja. Vamo embora daqui!
   Tião “boca-de-fogo” estava em pânico com toda aquela confusão no escuro. Pensava ser o fantasma do Isidoro lhe assombrando.
   - Mas, por que diacho fui desafiar o cabra do Isidoro? Você é mesmo muito burro, Tião. Devia ter ficado quieto no seu canto, mas não, tinha que desafiar o fantasma. - Resmungava o infeliz ouvindo os gritos que vinham de fora. _ E como se num bastasse, esse povaréu todo lá fora, querendo me esfolar vivo.
   Tião não sabia o que era pior: enfrentar a ira do escravo Isidoro ou se acovardar diante do povo de Curralin.
   - Dos males o menor. - Pensou. Afinal de contas, levar os outros no bico era com ele mesmo, mas tinha que estar muito vivo pra cair na sua lábia, o que não era o caso do Isidoro, ainda mais que o assombração do cabra da peste tinha vindo acompanhado pra acertar as contas com ele.
   - É melhor cair fora daqui enquanto é tempo.
   Para o azar de Tião, os ladrões estavam tão assustados quanto ele e pareciam pensar em fugir da mesma forma. Meu Deus, que confusão. Foi um verdadeiro furdunço de tromba-tromba e gritos na escuridão da capela.
   Ao ouvir a barulhada, a multidão do lado de fora se calou ansiosa, sem saber o que acontecia no interior da igreja. Estavam mais apavorados do que os cabra dentro da capela e olhavam angustiados à procura da polícia, ou melhor, do único guardinha que tomava conta de todo o lugarejo e só Deus sabia onde ele estaria dormindo àquela hora.   
   De repente a porta se abriu violentamente e os dois bandidos praticamente caíram no lado de fora.
   - Fantasma! Fantasma!! - Gritavam os ladrões assustados.
   Tião vendo a claridade da porta e ouvindo aquela gritaria, saiu tão rápido como um peido, quase ao mesmo tempo que os meliantes e deparou com eles sendo agarrados pelos moradores. Sem entender o que se passava, tentou se esquivar da multidão que vinha pra cima dele, mas logo também foi pego.
   - Não! Não! Eu não fiz nada, por favor. Eu prometo que nunca mais desafio esse tal de Isidoro e...
   - É ele!!! É ele!!! - Gritou alguém e Tião quase se borrou. Zezito o agarrou, enquanto os outros o ajudavam a levantá-lo no ar.
   - É o nosso herói. O cabra mais macho que já apareceu por essas banda. Botô os bandidos pra fora da capela. - Gritou Manuel.
   - Botei?!?    
   - Ele é o nosso herói!! - Gritaram todos.
   - Eu não te disse, Remundão? Só mesmo o Tião pra acabar com a farra desses cabra da peste desrespeitoso. - Falou Manuel se juntando aos amigos, enquanto o povo levava Tião carregado para o bar.
   - S’impolga não, Manuel. Essa história tá muito estranha.
   - Que nada, Remundão. Tião é cabra pra lá de arretado. O homi é macho mermo!
   - Sei não, viu.
   - Oia a cara dele. Ta inté assustado com tanta festança.
   - Tomara. – Concordou Remundão coçando o queixo desconfiado.
   Minutos depois, Tião não cansava de repetir a mesma história que inventou sobre como pegou os bandidos dentro da igreja.
   - Então eu apercebi que os danado tinha entrado na igreja e sem perder tempo, meti os peito na porta e pus a tranca abaixo. Quando vi no meio da escuridão aquelas armas apontadas pra mim, não pensei duas vezes. Dei um salto mortal por cima dos bancos e caí por detrás dos dois. Com um golpe certeiro de “jujits”, desarmei os cabra antes que eles atirasse...
   Enquanto Tião destrinchava sua história maluca, Dona Ambrosina se enlaçou em seu pescoço, toda cheia de mequetreche. A mulher parecia estar com fogo nas entranha de tanto que se esfregava em “boca-de-fogo”.
   - Mais  uma  pra  cair  na  lábia  desse  cabra da peste. - Observou Remundão.
   - Mas o sinhô num aquerdita mesmo nas façanha do Tião, héin? Nem veno com esses zói que tá plantado na sua cara que a terra há de cumê, né? - Defendeu Manuel.
   - S’impolga não, Manuel, que essa história ainda vai dar muito pano pra manga.
   - Tião enfrentou os cabra sozinho na capela do padre Benito e tu ainda tem dúvida da macheza dele?
   - Tá bom, tá bom, Manuel. Vamos deixar como está.
   - Por falá em corage, condé que o “boca-de-fogo” vai subir a serra e enfrentar o escravo Isidoro? - Perguntou Zezito.
   A pergunta do Zé caiu como uma bomba no boteco do Manuel e o silêncio sepulcral que se fez de repente, pegou Tião de calça curta. Coitado do infeliz, por essa ele não esperava. Logo agora que o mal-entendido com os bandidos o havia transformado no herói do lugar, tinha que aparecer o estrupício do Zezito pra lembrar do desafio que ele fizera contra o bendito escravo.
   - Ô xente, vamo dá um desconto pro homi aqui, uai. Afinal, ele enfrentou sozinho os bandido e salvou a capela do padre Benito. - Disse Manuel percebendo o aperto de Tião e todos olharam para ele com cara de tacho como se esperassem uma resposta. Mas o infeliz perdera até as forças para abrir a boca. Sorte dele estar em Curralin, lugar de gente boa, simples, porém sábia. Quando a gente acha que a vaca tá indo pro brejo, olha a salvação chegando. Antes mesmo que o “boca-de-fogo” conseguisse abrir a boca, Dona Ambrosina se adiantou e foi logo dizendo:
   - É isso mesm! Inquanto ocês ficaro tudo do lado de fora da capela do padre Benito isperano os bandido saí, Tião intrô lá sozin e dispinguelô supapo pra tudo que é lado. E agora ocês num vai dá discanso pro homi nem hoje que é feriado? Mais qui bissurdo!! Ocês num tem é coração, vice?
   - E tem mais, amanhã vai ser mais interessante, pois é sexta feira 13. - Disse Tião tentando ganhar tempo sem perder a pose.
   - Mas... oquequiss tem a ver com  o   escravo  Isidoro? - Perguntou Zezito.
   - E num é dia de azar? É na sexta feira 13 que os assombração fica tudo ouriçado, ué. E eu, Tião “boca-de-fogo”, vô botá o danado pra correr de volta pra tumba, viu seus cambada de cabra medroso? - Gritou Tião, sabendo que ainda ia se arrepender do que acabara de falar, mas não queria que desconfiassem de nada.
   - E por que não? Assim dá mais tempo pra gente tomar mais umas cachaça margosa, né pessoal? Ei, Manuel, tá esperando o quê pra encher o copo vazio do nosso herói? - Gritou um caboclo encostado no balcão e logo todo mundo já havia esquecido do tal desafio.
   Dessa vez Tião escapou por um fio. Faltou muito pouco para ele não dar com os burros n’água na frente de toda aquela gente. Porém, ele não era cabra de se abalar assim tão facilmente não. Caboclo vivido, cheio de maracutaias, tinha sempre uma carta escondida na manga. Certamente ia dar um jeitinho de se sair bem daquela enrascada que se metera.
   Enquanto todos pareciam estar se divertindo com sua bravura, o cabra saiu de fininho e foi até os fundos da pocilga do Manuel, onde o mesmo espetava o garfo numas linguiças rosadas sobre a chapa quente. Remundão ficava só de butuca. Sabia que tinha treta naquela prosa e ele ainda ia descobrir.
   Minutos depois, “boca-de-fogo” voltou de mansinho, como quem não quer nada, tentando disfarçar para não chamar a atenção sobre sua pessoa.
   - Aí tem coisa... - Resmungou Remundão.
   - Oquecocê disse?
   - S’impolga não, Zé. Só tava aqui matutando com os meus botões.
   Assim que fechou a boca, Manuel se aproximou de Ambrosina, disse-lhe alguma coisa ao pé do ouvido e saiu em seguida.
   Remundão não perdeu tempo e saiu logo atrás.
   - Ei, Manuel! - Chamou ele apertando o passo para se aproximar do amigo.
   - Quêcocê tá fazendo aqui, homi de Deus?
   - S’impolga não, Manuel. Só quero saber o quê ocês dois tão tramando.
   - Deixa de sê besta, sô. - Replicou o dono do boteco meio desconfiado. - Tamo tramando nada não, homi. Só vou buscar umas muda de roupa...
   - A essa hora?!? Já tá quase amanhecendo...
   - E é por isso mesmo. A missa na capela começa bem cedinho e eu num posso ir assim maltrapio, né? - Justificou Manuel.
   - E o que ocê e o Tião tavam tramando lá no fundo do boteco?
   - Tava tramando nada não, Remundão. Tião tava querendo saber em que pé tava as aposta, uai. Só isso.
   - Se é o que diz... - Respondeu desconfiado. “S’impolga não, Remundão, nesse mato tem cachorro e  tu  ainda   vai   descobrir   quem  é   o  caçador”. - Pensou.
   No dia seguinte quando tudo parecia estar pronto para Tião subir a serra, um cabra baixinho e esquisito usando chapéu de vaqueiro e uma arma que mais parecia um canhão, acompanhado por dois soldados meio desajeitados entrou no boteco do Manuel e gritou:
   - Atenção todo mundo! Quero saber tim-tim por tim-tim essa história de cabra macho escarafunchar o cruzeiro do Isidoro. Ninguém vai subir coisica nenhuma de serra até o cruzeiro do Isidoro.
   - Mas delegado...
   - Nada de mas, é ordem do prefeito. O cruzeiro é patrimônio público histórico e quem descumprir vai pro xilindró.
   - S’impolga não delegado, afinal o prefeito também fez “apostinha” dele, uai. - Disse Remundão dando uma piscadela para os amigos.
   - O prefeito? É mesmo? E como é tá o rateio? - Perguntou o delegado em voz baixa, interessado.
   - Dez por um contra o Tião.
   - E ocês acham que ele tem coragem mesmo de enfrentar o assombração do Isidoro?
   - Ô doutô, dêxa eu aporveitá pra fazer uma fezinha. Toma aqui minha parte. - Disse um dos soldados estendendo a mão cheia de notas amassadas.
   - Quê que é isso, soldado? Tá querendo ser preso também? 
   - Se inté o sô prefeito já agarantiu  sua   fezinha,  uai!? - Retrucou o subordinado.
   - Deixa de prosa soldado e vá prender esse tal de Tião.
   - Muito bem, cambada! Cês tem cinco segundos para me dizer onde está esse tal de Tião ou eu vô levá todo mundo pro xilindró. - Gritou o soldado todo petulante.
   - Mas  que  diabos  acha  que     fazendo,    soldado? – Interpelou o delegado.
   - É que eu vi isso num filme, chefe e rapidim o cabra apareceu.
   - Era só o que me faltava.              
   - Por falar nisso, cadê o “boca-de-fogo” que inté agora num apareceu? - Perguntou Manuel olhando em volta.
   - Apareceu não? Dê uma olhada no mictório, soldado!
   - Miqui o quê?
   - Mictório, soldado. “Casinha”, banheiro, entendeu homem de Deus?
   - Sim, sinhô! - Respondeu o soldado dando mixôxo.
   - Hei delegado, o Manuel tem razão, Tião ainda não deu o ar da graça aqui não!
   - Tem certeza disso, cidadão? - Perguntou o soldado peitando o cabra que falara.
   - Sim senhor.
   - Hei chefe, posso dar um jeito nisso e...
   - Vamo embora, soldado. - Disse o delegado deixando o boteco do Manuel sem levar Tião “boca-de-fogo”, que até aquela hora não tinha dado sinal de vida. Mas prometeu prendê-lo antes que subisse a serra em busca dos diamantes do Isidoro.


                                                              Continua na próxima semana!!!!

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