segunda-feira, 30 de julho de 2018

Sétima parte do romance "Aparições e mineirices do Isidoro".


                                              Capítulo - 07
                                              Êta cabra valente
  
   Curralin, palco de uma festança arretada, continuava recebendo cada vez mais gente que, curiosa com a notícia do desafio que se espalhava que nem fogo no capim, não queria perder a aposta do Tião “boca-de-fogo” desafiando o fantasma do escravo Isidoro, nem que a vaca tussa. Enquanto isso, Paulinho violeiro embalava a noite com sua cantoria, e que de acordo com os mais encabulados, era acompanhado pelo espírito do irmão, e olha que alguns juravam de pé-junto que estavam vendo ele no palco. Pelo sim, pelo não, ninguém se atrevia a desmentir. O que importava na verdade era a proximidade da hora, anunciada pelo violeiro de meia em meia hora, em que Tião subiria a serra em busca dos diamantes do Isidoro.
   No boteco do Manuel, a turma do Remundão estava mais animada do que nunca. Todos queriam ver a macheza do cabra e não perderiam aquele acontecimento por nada desse mundo.
   - Cês num acham que o Tião tá tranquilo demais da conta pra quem vai encarar o assombração do Isidoro não? - Observou Zé das Candeia.
   - Uai, sô, e num é que é mesm?
   - S’impolga não, pessoal. Ainda tá cedo por demais e ele tá bebendo tanto que vai despencar antes mesmo da hora de arribar a serra e pegar o boi pelo chifre.
   - Já passa das dez hora e daqui a pouquim ele tem que subi a serra   de   carqué   jeito,   quereno   ou   não. - Lembrou Zezito.
   - Hei Tião, tá preparado pra enfrentar o Isidoro?
   - Calma, pessoal. O cabra aqui é muito dos macho pra ter medo de um assombração mixo desse, sô. Inda mais que tá por demais de cedo e as aposta tão só aumentando, num é Manuel?
   - Oxi, já num tá nem cabendo mais dinheiro na caixa, uai. - Respondeu o dono do boteco rindo até as orelhas.
   - Intão trata de arruma outra caixa e escondê logo essa aí, né uai? 
   - Bem pensado né Chicão. Vou ponhá ela debaixo do balcão pra ficar bem escondidinha aqui e aí quando o Tião chegar daquela serra, vamo vê os nome dos apostador pra saber quem vai levar a bolada, né?
   Tião tava muito confiante no plano arquitetado pelo prefeito e continuava bebendo que nem que doido e assim que deu a hora, Paulinho violeiro parou a música e pediu uma salva de palmas pra ele. O coitado do cabra foi pego de surpresa e quase teve um trem no coração. Por um instante pensou que tinha mesmo que subir aquela serra e desafiar o espírito do escravo Isidoro, coisa que no fundo ele tinha certeza que se borraria todo se tivesse que fazer. Sabia que não teria coragem de subir lá naquele fim de mundo, onde o gato perdeu as botas, de madrugada, só para mostrar macheza. Mas ainda bem que o prefeito, sem saber, acabou dando uma mãozinha danada de porreta pra ele.
   Tião pegou o último copo de pinga, jogou um pouco para o santo e, aliviado, bebeu de uma golada só. Na verdade, se ele fosse jogar um pouco da pinga para cada santo que agradeceu naquela hora, ia precisar de mais de litro. Todo peitudo, saiu à porta do boteco do Manuel e abanou a mão para o povo que gritava seu nome. Nunca o pobre do cabra inchou tanto o peito como àquela hora. Sentia-se como um político vitorioso cumprimentando o povo após as eleições.
   O cabra, já meio tonto, passou pelo meio da multidão e foi direto para o carro de som, onde o prefeito já o esperava todo cheio de nhéim, nhéim, nhéim, pois sabia que em algumas horas, além do dinheiro arrecadado com as taxas, licenças e pedágios cobrados até então, ganharia o apoio dos eleitores na sua corrida para se eleger deputado. Pra ele, tudo aquilo era apenas uma tramoia política.
   - E aqui está o cabra que desafiou o espírito do nosso lendário escravo Isidoro!! Vamos aplaudir esse corajoso rapaz que diz que vai subir a serra até o cruzeiro, trazer o candeeiro e os diamante do infeliz!
   A praça toda se explodiu em gritos e aplausos que fizeram Tião se sentir o dono da cocada preta, e sem se conter, o cabra foi até o palco e puxou o microfone das mãos do prefeito, gritando com voz arrastada:
   - É isso mesmo seu prefeito! Vou mostrar pra todo mundo que o cabra aqui é muito macho mesmo. E num vou trazer só aquele lampiãozin véio não, vou trazer os diamante também e se aquele fantasma num gostar eu trago até ele dentro dum saco.
   Pobre Tião. Não sabia em que mato tava se metendo e isso ainda ia dar muito pano pra manga. Podia acabar com os burros n’água. O infeliz tava confiante por demais na chicana armada pelo prefeito e isso tinha tudo pra não dar certo, afinal, estavam em Curralin, onde até o mais improvável podia acontecer. Beijou a mão do prefeito e desceu do palco cambaleante e se não fosse o povo, tinha tomado rumo errado ao caminho que ia dar no cruzeiro.
   - Antes preciso dar uma passadinha na igreja. - Disse Tião.
   - Mas a igreja tá fechada a essa hora, homi de Deus.
   - E eu num sei? Mas o prefeito mandou, então eu passo.
   - O prefeito?                              
   - Psssit... conta pra ninguém não. - Falou ele cada vez mais bêbado. – Boca-de-siri.
   - Tá bem. Se o prefeito mandou.
   E Tião desceu meio que arrastado pela ruela que dava na praça da capela, sob o incentivo da multidão. A danada da cachaça começava a subir e o cabra já quase não se aguentava de pé.
   - Vaaiiiiii, Tião!! - Gritou dona Josefina toda ouriçada da janela de casa.
   - Hei Zefinha, meu amor. Vou trazer um diamante bem grande pra você, viu?
   Da porta do boteco do Manoel, o grupo de amigos olhava “boca-de-fogo” cambalear beco abaixo, cumprimentando todo mundo como se os conhecessem.
   - Nunca vi esse cabra tão bêbado assim. - Disse Manuel.
   - É mió a gente ficar de ôio nele, antes que ele se estrepe num buraco desses aí.
   - S’impolga não, pessoal. “Esse  caldo  tem  pimenta”.  - Disse Remundão coçando o queixo.
   - O sinhô acha que ele tá é de fingimento, seu Raimundo? - Perguntou Sandoval.
   - Ô Remundão, o sinhô também disconfia de tudo, hein?
   - Manoel, Manoel...  quantas cachaça o senhor serviu pro Tião hoje?
   - Um  tanto  pra    de  metro,  sem  base,   eu   acho... - Respondeu o dono do boteco coçando a cabeça.
   - E quantas vezes o Tião ficou bêbado?
   - Nunquinha.
   - O seu Remundo tem razão. - Disse Chicão. - Já vi o Tião beber pra mais de dúzia e ainda ficar sãozin da silva.
   - Nesse mato tem coelho.
   - Mió mesmo é a gente fica de espreita espiando esse cabra.
   - Vou pedir dona Ambrosina pra ficar aqui tomando conta e nós vamo pegar esse caboclo com a boca na botija, ah se vamo.
   Assim que chegaram à pracinha, Tião já havia desaparecido no meio do povo que nem fumaça no vento.
   - Ô xente, adonde é que foi pará  esse  cabra da   peste? - Perguntou Manuel coçando a cabeça.
   - S’impolga não, Manuel, o danado deve de tá dentro da igreja.
   - Ô Remundão, tu não vê que tá tudo fechado, homem de Deus?
   - E num é que tá mesmo. Então o cabra se escafedeu de vez...
   - Eu disse, esse Tião é mesmo um cabra muito porreta. É mió a gente voltar pro bar, vai que esse cabra já tá subindo a serra pra confrontar com o Isidoro e nesse minuto tá de volta.
   - Tem razão. - Concordou Remundão cada vez mais desconfiado daquela historia toda.
   Assim que chegou na pracinha do chafariz, Tião se esgueirou sorrateiramente pelos cantos, contornando a capela até os fundos, onde se escondeu à sombra da noite, até a chegada do assistente do prefeito, como combinado. Não tardou muito para que o homem surgisse caminhando de ponta dos pés abraçado a um pequeno pacote.
    - Tome. Aqui estão o lampião velho e  os   diamantes. - Disse ele assim que viu o Tião. - Quando o sino da capela bater, você volta pra porta do bar do Manoel e faz tudo do jeitinho que a gente combinou, entendeu?
   - Se preocupa não que eu vô convencer até o próprio fantasma do Isidoro de que ele perdeu essa aposta.
   - Rapaz, é melhor não brincar com uma  coisa  dessas. - Repreendeu o assistente do prefeito sentindo um calafrio percorrer-lhe a espinha.
   - Fica tranquilo, ninguém vai desconfiar de nada.
   E assim a estória do Tião começava a virar lenda em Curralin. Há quem diga que tudo começou diferente, mas dito pelo não dito, o certo era que a fama do Tião rompeu os limites do pequeno município e se tornou indiscutível para quem morava ou tinha parentelas nas redondezas.
                          

                                                  Continua na próxima semana...

domingo, 22 de julho de 2018

Sexta parte do romance "Aparições e mineirices do Isidoro"


   
   Capítulo – 06
   A tramóia do prefeito
                         
    Antonio José de Oliveira Magalhães Abreu e Silva, este era o nome do prefeito. “Mas pode me chamar de Zequinha”, dizia ele com um largo sorriso no rosto. Com um nome desses, o infeliz tinha mesmo que ser político ou então o cabra era parente de Dom Pedro e ninguém sabia. Coisas de cidade do interior. Cheio de “Uai’s” o danado conseguia embromar todo mundo na conversa e ainda se safava bem das tretas que arrumava como prefeito.
   Naquele dia, assim que o delegado deixou o boteco do Manuel, Curralin recebeu a visita inesperada de um trio elétrico que passeou pelas ruelas com um som ensurdecedor até estacionar na pracinha próxima ao boteco do Manuel. Ninguém sabia o que estava acontecendo, mas todos pareciam aprovar a novidade, e até quem não era da cidade entrou na festa feita por aquela geringonça barulhenta.
   - Vixi Maria, mas que diabos está acontecendo aqui?!? - Perguntou Manuel se aproximando dos amigos que já haviam se agrupado num canto.
   - Como pode ver, coisa do doutô prefeito, uai. Olha lá as faixas de agradecimento.
    - E porque diacho o homi tá nos agradeceno?
   - S’impolga não, Zézito. Alguma coisa o prefeito tá querendo. - Disse Remundão desconfiado. - Primeiro manda prender o Tião, depois vem fazer festa? Comigo não, violão.
   - Ô seu Remundão, o sinhô é muito discunfiado tomém, né?
   - Chicão, Chicão, anota aí o que eu tô te dizendo: esse tal prefeito tá aprontando mais uma das suas.
   - Pelo menos tem festa na cidade, né?
   - Tão falano por aí que inté o tal de Paulinho violeiro veio da capital só prá tocá aqui prá nóis.
   - O cabra é muito porreta mesmo com aquela viola, toca inté de ôio fechado.
   - Sabia que toda vez que esse caboclo toca, o esprito do irmão dele, um tal de Régis aparece todo prosa e fica ali do ladinho dele acompanhando?
   - Cês tão é tudo doido, sô. - Disse Zezito fazendo careta. - Só pru quê o cabra é pra lá de porreta num tem base o esprito do irmão tocá com ele, né?
   - Óia! Óia! o carro do doutô prefeito! - Gritou Chicão entusiasmado.
   - O que é que ele veio fazer aqui? Tem certeza que é ele mesmo?
   - S’impolga não, Chicão. Garanto que ele não veio trazer nada além daquela pança gorda.
   - Iiichhh danô! Ele tá vindo diretin pra cá.
   O prefeito desceu do carro e caminhou direto e sorridente até a porta do bar do Manuel, sacolejando sua barriga avantajada.
   - Meus queridos eleitores, que prazer poder estar dividindo com vocês a alegria dessa festa maravilhosa neste lindo   distrito   pertencente   ao   meu   município. - Disse ele orgulhoso.
   - Quanto tempo o sinhô não vem por essas banda, seu prefeito?
   - É muito trabalho na prefeitura para melhorar a vida da comunidade, né uai?
   - E o que  traz  o  sinhô  por  essas  banda  de cá,   oh  xente?
   - Vim conhecer este rapaz tão corajoso de quem se tem falado tanto, uai. - Disse o prefeito olhando ao redor.
   - Mas... me isprica uma coisa, doutô prefeito, premero o sinhô manda o delegado prender o homi e dispois o sinhô quer conhecê ele? - Perguntou Zezito coçando a cabeça.
   - S’implga não, Zé. Deve ter tido um mal-entendido aí, não é seu prefeito?
   - Mas é claro, meus amigos. Foi... foi isso mesmo, um mal-entendido. - Gaguejou o prefeito enquanto ajeitava as calças sobre a volumosa barriga. - Só pedi ao delegado para levá-lo até a prefeitura para que eu pudesse conhecê-lo pessoalmente.
   - O sinhô não ia prender o rapaz?
   - Nananinanão! Nada disso! Afinal de contas é por causa dele que a cidade tá cheia assim, não é mesmo?
   - Mas a culpa num é dele não...
   - Eu sei, eu sei. Foi apenas uma brincadeira que deu certo e podem apostar que estou muito feliz   por   isso. - Respondeu o prefeito olhando em volta. - Onde é que tá esse rapaz que ainda não vi?
   - Tá aqui não, doutô.
   - Que pena. - Lamentou. - Quando ele aparecer, diga que gostaria muito de falar com ele na prefeitura, está bem?
   - Sim sinhô, seu prefeito. Podexá que nos fala pra ele.
   Depois de dar algumas voltas entre a multidão, fazer um pequeno discurso para seus eleitores, o prefeito entrou no carro e desapareceu de Curralin.
   - Mas que diacho o doutô prefeito queria aqui, que eu num intendí nadica de nada, hein? - Disse Manuel coçando o queixo.
   - S’impolga não, Manuel. No fundo desse poço tem água de ferro.
   - Seu Remundão, pruquê o sinhô fala essas coisa isquisita assim? - Perguntou Chicão sem entender.
   - Nada não, Chicão. Nada não...
   - Quer dizer intão que ele autorizou o “Tião” a subir a serra à meia noite...
   - Isquece isso homi de Deus, vamo aporveitá a festa. O Doutô prefeito disse que vai ter xôu de música com o Paulinho violeiro e ôtras coisa boa, sô. - Disse Chicão todo empolgado.
   - Festa? Mas... quem organizou tudo isso assim tão depressa? - Perguntou Manuel.
   - E quem mais poderia ser?  - Disse Sandoval chegando com seu jeito moleque e  um  copo   de pinga  na  mão. – Erivaldo, é claro.
   - Quem diacho é esse “Erivaldo é claro”? - Perguntou Zezito.
   - Não é “Erivaldo é claro”. É só Erivaldo. - Respondeu Sandoval.
   - O fí do gerardão militar que mora na ladeira do Burgaial?
   - É ele mesmo. Irmão da Rosa professora...
   - Aquela fessôra que já leu tudo cuonto é livro das bisbi, brisbi, bliblioteca dessa cidade?
   - Ela mesma. Irmã do Erildo, da Rita, Marialice...                                  
   - Aquês minino é bão por demais, sô.
   - Dizem inté que esse tal de Erildo viaja tanto que cunhece inté ôtros praneta.
   - S’impolga não, Chicão. Os meninos são filho do Geraldo e são muito prendado mesmo.
   - Nós vamos ficar aqui de prosa ou vamos entrar no boteco do Manuel pra comemorar tomando aquela pinguinha da boa que tá nos esperando? - Convidou Sandoval e os cinco mais que depressa saíram da rua.
   Sandoval era um cabra pra lá de porreta. Êta neguin danado. Num tinha quem não gostava dele por aquelas bandas de Curralin. Era o tio San desse Brasilzão véio sem porteira e todo mundo que apeava naquelas bandas, mais cedo ou mais tarde, se intretia com as prosa do cabra nas ruelas estreitas por onde a Sinhá Chica mandava e desmandava nos caboclo véio de outrora. Êita caboclinho bão, sô. Jeitinho de baiano, gingado de carioca, mas nasceu mesmo foi nessas banda onde a serra aconchega o sonho e floreia os olhos de sempre-vivas.  Dizem até que um cabra daquele lado virou presidente e num construiu só uma igrejinha que nem a Chica não. O cabra era tão atrevido que foi logo construindo uma cidade inteirinha noutras banda.
   Mas a vida é assim mesmo. Uns vão, outros vem e Curralin não deixa de ser o lugar aconchegante atolado no meio da serra, com suas muitas histórias que se conta desde outros tempos. Do nada surge um boato que vira um causo que passa de um pra outro e depois mais outro e mais outro e quando se assusta já é lenda.
   E com o escravo Isidoro não foi diferente, mas, se era mentira ou verdade ninguém queria saber, o importante é que os cabra do lugar não deixavam por menos e cada um queria tirar uma casquinha de vantagem e aumentar um pouquinho mais daquela história. Se o desafio do Tião “boca-de-fogo” se estendesse por mais tempo, Curralin ia ser um Deus-nos-acuda de tanta gente. Mas Tião era cabra muito macho e esperto por demais e num ia deixar aquela chaleira no fogo por muito tempo não.
   Naquela mesma tarde o doido do cabra bateu com os pés na prefeitura pra acabar de vez com aquela lengalenga de que podia ou não subir a serra pra desafiar o tal do Isidoro. É isso mesmo que o cabra desmiolado fez. Foi lá fala com o prefeito e resolver de vez aquela história. Mas, assim que o assessor do prefeito Zequinha bateu com os óio nele, quase teve um troço. Puxou o cabra pelo braço até um canto e foi logo perguntando:
   - Mas que diacho cê ta fazendo aqui, homi de Deus? Hoje é feriado e a prefeitura tá fechada. Tu num já recebeu sua paga pelo serviço?
   - Sim, senhor, mais é que...
   - Sem mais nem menos. O prefeito num pode te ver aqui de jeito maneira senão...
   - Senão o quê, Zé Bento? - Perguntou o prefeito saindo do gabinete empurrando a enorme pança.
   - É que este é o...
   - Não precisa dizer, meu rapaz. - Disse o prefeito sorridente. - Então este é o cabra pra lá de macho, o famoso Tião “boca-de-fogo”.
   - Nnão... quer dizer sim.
   - Mas é sim ou é não? - Perguntou o prefeito sem entender nada. - Entrem no meu gabinete que tu vai me contar tim-tim por tim-tim essa história descabida.
   Depois de passar a chave na porta, o prefeito sentou-se e foi direto ao assunto.
   - E então?
   - Bem... é que... aconteceu alguns imprevistos naquela contratação do moço da televisão e... bem, na verdade o Tião aqui não é o Tião de lá. - Disse o assessor se mexendo na cadeira, nervoso.
   - Mas isso já é sabido, afinal ele é um ator que mandei contratar para aumentar o turismo na cidade uai.
   - Sim, sim, mas este não é o ator contratado.
   - Não?
   - Sim...
   - É sim ou é não, diacho?
   - Não sinhô. - Disse logo Tião. - Mas eu num fiz nada de errado não. Fiquei com medo e fingi que era parente distante de umas pessoas lá das redondeza só pra ter onde ficar e a coisa desandou.
   - E como sabia que desafiar o fantasma do escravo Isidoro ia trazer tanta gente pra minha humilde cidade? - Perguntou o prefeito.
   - Sabia não senhor. Foi só uma brincadeira com os amigos. - Respondeu Tião ainda temeroso com o prefeito.
   - E onde está o moço da televisão?
   - Eu já dispensei o rapaz, prefeito, já que o improviso do nosso amigo Tião saiu  melhor   que  a   encomenda. - Explicou o assessor com um largo sorriso.
   - Sei não, sei não... isso ainda pode trazer problema. E tu? Pretende mesmo subir a serra e trazer os diamantes do escravo Isidoro?
   - Bão, subir a serra sim, agora trazer os diamantes do escravo é outra história. - Disse Tião ressabiado.
   - E por que você não pegaria os diamantes já que vai mostrar essa macheza indo até lá?  
   - É que na verdade eu nem sei se tem diamante de verdade naquela cruz, uai. Pra mim isso é só história pra boi dormir.
   - Acho que então nós temos que arranjar uns diamantes de mentirinha pra convencer o povo, não é mesmo? - Sussurrou o prefeito piscando um olho para os dois.
   - Mas como? - Quis saber o assessor.
   - Vamos fazer o seguinte: Na hora marcada o nosso amigo Tião finge que vai até o cruzeiro do Isidoro, se esconde atrás da capela e deixa o resto por nossa conta.
   - E os diamantes?
   - Calma que já dou um jeito nisso. - Disse o prefeito indo até o cofre e tirando de lá um pequeno embrulho que derramou sobre a mesa. Os olhos do Tião quase saltaram da órbita.
   - Meu Deus... é diamante de verdade?
   - É claro que não. São apenas cristais lapidados, não valem nada. Assim que você chegar da “serra” é só mostrar pro povo, fazer a festa e então eu chego com o delegado, confisco tudo e eles voltam pra prefeitura, entendeu? Ninguém vai perceber que não é  diamante. - Explicou o prefeito  satisfeito  com  seu  plano. - Você cumpre o seu desafio, a cidade fica famosa e eu, claro, posso me candidatar a deputado.
   - O senhor é mesmo batuta de esperto hein prefeito? - Elogiou o assessor.
   Ah prefeito Zequinha. Quem te viu e quem te vê. Quem te conhece não te compra nem se os diamantes fossem verdadeiros. Mas, fazer o quê? Conversa de político e história de pescador o melhor mesmo é não contradizer e ir saindo de fininho como quem não quer nada. Afinal, já dizia o ditado: quem conta um conto acrescenta um ponto e não queremos delongar e complicar essa prosa ainda mais. Curralin era lugar de gente simples, pacata e feliz, onde o cabra se aconchega no cantinho e como todo bom mineiro fica só observando desconfiado, caladinho enquanto o trem ganha trecho.
   O plano do prefeito tinha tudo para dar certo, porém o que ele tava longe de saber, era que o verdadeiro cara da televisão contratado a princípio, não tinha ficado muito satisfeito com a dispensa do trabalho e resolveu ficar de tocaia ali pelos arredores da prefeitura e assim que viu Tião chegando, foi correndo ficar de butuca sob a janela do gabinete, nos fundos da prefeitura.
   - Quer dizer que esse tal de Tião tá de trêta com o prefeito no meu lugar, hein? Então vou dar uma mãozinha por conta da casa. Esses dois não perdem por esperar. - Murmurou o rapaz.  
   Assim que Tião “boca-de-fogo” saiu da prefeitura, passou na casa dos tais parentes e depois foi correndo para o boteco do Manuel de onde os amigos não arredaram pé o dia todo.
   - E aí rapá, oncêtava? - Perguntou um.
   - Tu escafedeu-se. - Disse outro.
   - Os pulíça te prendeu?
   - S’impolga não, pessoal, chega dessa perguntação e deixa o cabra respirar. - Falou Remundão, e quando Remundão falava os cabra tudo se calava.
   - Ocês é muito preocupado comigo, sô. Tava por aí mesmo.
   - Ahh isso é que  não. - Disse   Zezito   se   adiantando. - Nós fumo im tudo que era canto da cidade e ninguém sabia oncêtava enfiado?!
   - Tá bom, tá bom. Na verdade, eu fui dá uma dura no doutor prefeito. - Soltou Tião observando a reação dos outros.
   - Cê ficou louco, rapá? Onte mesm ele mandou te prendê e agora tu se enfia na cova-do-leão?
   - É por isso mesmo que eu fui lá avisá pra ele que tá pra nascer um cabra macho que vai me impedir de desafiar o escravo. E mais, mandei ele vir aqui na praça pra falar com esse povaréu que o Tião aqui é cabra pra lá de macho e nem ele nem o sô delegado vai me impedir de subir essa serra hoje e pegá os diamante do escravo, tão intendendo?
   - Cê disse isso tudinho assim   pro   prefeito   mesmo? - Perguntou Sandoval com ar de ironia.
   - Tim-tim por tim-tim, palavra por palavra.
   - Pela cara dele aí atrás num tá parecendo não.
   Tião deu um pulo quase sem cor e se virou para o prefeito parado a alguns passos.
   - Se...seu pre.. prefeito?!? - Gaguejou ele quase sem voz.
   - Sempre contando suas estórias não é, meu rapaz?
   - S’impolga não, seu prefeito, esse cabra não tem papa na língua. - Justificou Remundão.
   - Mas o que traz de volta uma pessoa tão fina na minha humilde casa, seu prefeito? - Zombou Manuel se derretendo em cordialidade.
   - Na verdade vim aqui para incentivar esse cabra que resolveu desafiar o escravo Isidoro hoje.
   - E o sinhô num vai proibir?
   - Não, não. E pra provar que estou de acordo, vou subir naquele carro de som e oficializar o desafio e anunciar o apoio da prefeitura à coragem desse rapaz que trouxe a esta cidade uma nova visão do turismo. Espero vocês todos lá na praça, está bem? - Disse o prefeito se despedindo do grupo.
   Manuel se derretia de satisfação com tanta gente entrando e saindo do seu estabelecimento. Dona Ambrosina havia se tornado funcionária oficial do boteco e corria de um lado pro outro pra atender tanta gente.
   - Sandoval, ajuda aí né, meu fí! - Dizia ela toda vez que passava perto do rapaz que não largava do copo de pinga. Vez por outra ele se levantava e dava uma mãozinha para ajudar a servir os fregueses que pareciam se multiplicar a cada hora.
   - De onde será que saiu tanta gente assim, meu Deus!
   - S’impolga não, Dona Ambrosina. Até o fim do dia isso aqui vai virar um furdunço de tanto cabra.
   - É Manuel, mió pedir mais cerveja que essa num vai dá não, sô.
   - Já pedi pro Zé da Cachaça trazer mais umas caixa de cerveja e...
   - Ihhh foi só falá no bendito que  ele já     chegando. - Disse Sandoval vendo o projeto de jipe parar na porta do boteco, fazendo uma barulheira infernal.
   E assim foi a tarde toda em Curralin. Gente pra tudo que era lado. O pequeno lugarejo quase não comportava o número de pessoas que se espremiam pelas ruelas apertadas num vai e vem interminável. Grupos de batucada e até uma passeata de protestantes em favor dos direitos dos fantasmas escravos que até então ninguém nunca ouvira falar, surgiu carregando faixas e cartazes pela praça. Enquanto isso no bar do Manuel, as apostas iam subindo cada vez mais em favor do escravo Isidoro, mas Tião parecia não se importar com isso. Continuava contando suas façanhas pelo mundo afora e se gabando de sua macheza como se nada tivesse acontecendo.
   Enquanto isso, o prefeito desfiava seu rosário na praça, declarando oficialmente aquele dia como “dia municipal do desafio”, dizendo que isso iria incentivar os cidadãos curralinenses a buscar seus objetivos, superando suas próprias limitações e que assim que se tornasse deputado mandaria um projeto de lei para a câmara tornando aquele dia de feriado em feriado nacional. E o prefeito Zequinha falava com tanta seriedade que uns poucos eleitores puxa-saco do partido, que ainda teimavam em prestar atenção no discurso, começavam a achar que era verdade e até batiam palmas histericamente. Mas no fundo, ninguém mais parecia interessado na lengalenga daquela prosa toda. O trem tava bão mesmo era no meio da muvuca, nas batucada cheia de gente bonita e nas conversa boba rua afora, afinal de contas, aquele era o grande dia que marcaria mais um capítulo na história do pequeno lugarejo incrustado no meio da serra, onde tudo podia acontecer. O coitado do Isidoro é que não ia gostar nem um pouquinho de saber que todo aquele forfé era por conta das ideia atravessada de um cabra infeliz que resolveu atiçar sua cova e assombrar seu espírito só pra mostrar sua macheza. O cabra do Tião podia até tá arrependido, mas agora era tarde demais para desistir, afinal, de contraventor por falsidade ideológica passou a ser aliado do prefeito para o bem comum da cidade. Havia se tornado um herói, e herói que se preza não foge de um assombraçãozinho à toa. O trem já tinha começado a feder e só faltava agora saber o que o cabra da peste da televisão que perdeu o lugar pro Tião ia aprontar depois de ser passado pra trás.
   Não deu outra. O cabra, inconformado com a situação subiu a serra e começou a cavucar no meio das pedras, quando uma baita dor de barriga lhe pegou de jeito. O pobre coitado saiu correndo aperreado com as calças na mão e quase se atirou detrás d’uma moita, numa grota a poucos metros do cruzeiro do Isidoro. Enquanto fazia o “serviço”, ficou observando cabreiro o candeeiro enferrujado do escravo.
   - Se tu pensa que tenho medo de fantasma, tá muito enganado, viu? Se tiver diamante aqui eu vou achar e não vai ser uma dorzinha de barriga que vai me impedir não, tá me ouvindo? - Resmungou o rapaz rindo de si mesmo. Uma pedra rolou barranco abaixo, parando ao seu lado, próximo a moita. O sujeito olhou aquilo e se pôs a levantar. Olhou em volta à procura de algo pra se limpar e como não achou, puxou as folhas da moita, arrancando toda ela do chão, com raiz e tudo.
   - Caramba, meu. Que diacho de coisa brilhando é isso ali? - Perguntou pra si mesmo, vendo surgir na terra algumas pedrinhas brilhantes. Pegou-as na mão e depois de observar por alguns segundos, pensou: Ah se isso tudo fosse diamante... mas é só vidro quebrado, droga. Pensando bem, isso me deu uma boa ideia.
   O cabra, sem saber que se tratava dos diamantes verdadeiros do escravo Isidoro, juntou tudo, enfiou dentro do bolso e fincou morro abaixo. Desceu a serra cheio de caraminhola na cabeça, feliz da vida, pois ia dar o troco naquele impostor safado.
   Assim que o rapaz deixou o cruzeiro do Isidoro em direção à Curralin, o assistente do prefeito chegou meio ressabiado e vendo o cabra correr serra abaixo, coçou a cabeça incucado.
   - Mas que diacho esse cabra da peste veio fazer aqui em cima? Ainda bem que num tem diamante nenhum nesse lugar, senão podia jurar que esse infeliz veio procurar. - Resmungou pra si mesmo. - Deixa pra lá, só vim mesmo é pegar esse candeeiro velho antes que escureça e levar pro Tião “boca-de-fogo”. Assim, ele finge que desafiou o escravo Isidoro, ganha a aposta e todo mundo fica feliz. - Completou o assistente passando a mão no lampião enferrujado e fincando caminho de volta.                                
                            
                                                                       Continua na próxima semana!!!


domingo, 15 de julho de 2018

Quinta parte do romance "Aparições e mineirices do Isidoro"


   
   Capítulo – 05
   Herói por acaso
  
    As horas iam passando, passando e não é que o “boca-de-fogo” ficou tão bêbado que já nem lembrava mais do tal do assombração? Pra falar a verdade, ninguém mais se lembrava do desafio que o cabra havia feito. O povo tava que não aguentava mais de tanto beber, mas enquanto a batucada não parava de bumbar pelos becos de Curralin, a danada da cachaça continuava descendo goela abaixo acompanhada do velho e tradicional torresmo do Manuel.
   Sem perder tempo, o dono do boteco foi logo abrindo o lance das apostas. Quem botava quem pra correr? “Boca-de-fogo” ou o escravo Isidoro? O páreo tava difícil, mas o difícil mesmo era encontrar alguém que apostasse contra o Isidoro. Todos já tinham ouvido falar do escravo e não acreditavam que Tião tivesse coragem para subir a serra durante a madrugada e tirar os diamantes do fantasma, mas, enfim, o certo era que ninguém parecia muito preocupado em quem ia ganhar ou perder aquela aposta. O importante era festejar sem qualquer compromisso.
   Lá pelas tantas, alguém lembrou Tião da aposta. Mais do que depressa, o danado foi dando um jeitinho daqui, jeitinho dalí e desapareceu sem que ninguém percebesse.
   Assim que ele saiu, um cabra entrou no boteco afobado e gritando que nem um maluco.
   - Ladrão, ladrão!!.
   - Ladrão? Quem?
   - Não, não, não! Aqui dentro não. Tem ladrão lá fora!
   - Diga logo onde, seu cabra da peste!
   - Na capela! Tem ladrão na capela do   padre   Benito!  - Gaguejou o caboclo esbaforido.
   Num deu outra. Todo mundo se debandou ladeira abaixo em direção à capela, como se o próprio boteco do Manuel tivesse pegando fogo.
   Tião, que já se adiantara alguns metros, ouviu todo aquele alarido provocado pelo corre-corre e olhou para trás assustado. Quando viu a multidão correndo desenfreada em sua direção não pensou duas vezes. Picou a mula ladeira abaixo.
   - Meu Deus, meu deusinho, me ajuda! É agora que eu tô morto! - Gritava ele enquanto fugia da multidão pelos becos de pedra. Pela primeira vez em sua vida pediu ajuda a todos os santos que conhecia e até os que nunca ouvira falar. Era ele clamando na frente e o povão gritando atrás.
   Assim que chegou à praça, viu a porta da capela entreaberta e não pensou duas vezes, se embicou pra dentro sem olhar para trás.
   - Obrigado, meu Deus! Foi tu que me abriu essa porta. - Agradeceu aliviado, sentindo-se mais seguro. Coitado! Nem imaginava que acabara de entrar na maior enrascada de sua vida. Se a coisa já tava ruim pra ele, agora ficava ainda pior. Tinha enfiado a cabeça na boca do leão sem saber.
   Os ladrões, assim que ouviram o barulho da porta, se esconderam na sacristia e ficaram de butuca.
   - O que foi isso? - Cochichou um.
   - Sei não... parece que chegou alguém.
   - Vá lá e dê uma olhada.
   - Por que eu?
   - Vai logo! - Mandou o que parecia ser o líder, empurrando o comparsa.
   Tião “boca-de-fogo” ouviu o cochicho dos dois e tremendo mais que vara verde, correu para o confessionário, onde se escondeu.
   - Só pode ser o cabra da peste do tal do Isidoro que veio me assombrar. Por que é que eu fui desafiar esse fantasma dos inferno? - Lamuriou ele enfiando a cabeça entre os braços e se encolhendo ainda mais no pequeno cubículo de madeira entrelaçada.
   Do lado de fora da capela, a multidão ia se ajuntando e em poucos minutos a praça tava apinhada de gente querendo salvar a capela das mãos dos bandidos, sem ao menos imaginar que Tião “boca-de-fogo” tinha se escondido lá dentro.
   - Vamo pegá esse cabra safado!! - Gritou alguém.
   - Num deixe esse ladrãozinho duma figa fugir!! - Reforçou outro.
   - Ladrão?? Eu??? Mas eu num roubei nada de ninguém, ora. - Pensou Tião escondido no confessionário, sem entender. - Mas essa gente tá é danada de brava comigo, sô! Já tão me chamando até de ladrão... agora é que eu tô na bosta mesmo.
   - Vamo arrancá esse infeliz da capela à força e dá uma sova nele, pessoal!!
   - Cuidado que ele deve de ser muito pirigoso e pode tá armado!! - Gritou alguém provocando um corre-corre, um esconde-esconde dos diabo para se protegerem de um possível tiroteio.
   - Se o Tião tivesse aqui, ele arrancava esse cabra de dentro da capela na unha. - Disse Manuel escondido atrás do chafariz.
   - S’impolga não, Manuel. - Retrucou Remundão sem desviar os olhos da capela. - Esse Tião só tem é lábia. Foi o primeiro a dá no pé.
   - Não, o Tião não! Ele é cabra pra lá de macho e ia rodá a baiana e tirá esse sem vergonha de dentro da capela no tapa.
   - Vai acreditando, hein Manuel?
   - Pode arcreditá, Remundão. Eu sei o que tô falano, homi.       
   Enquanto os dois discutiam na praça, os ladrões cochichavam, cada vez mais assustados, pensando numa maneira de fugir da capela.
   - Eu te disse que roubar igreja dava azar, mas não, você não me ouviu e agora... - Censurou um deles.
   - Cala a boca! Eu mandei você olhar que barulho foi aquele e você tá aí até agora só reclamando que nem uma velhinha.
   - Você sabia que essas igrejas antigas estão cheias de assombração?
   - Deixa de ser medroso e vai logo olhar antes que eu te jogue lá fora.
   - Tá bom, tá bom. - Resmungou o infeliz tateando na escuridão. - Mas que tem assombração nessas casas velhas, ah isso tem.
   Depois de olhar por todo o salão da capela, o ladrão não conseguiu distinguir ninguém no meio a escuridão e quando se preparava para voltar para junto do comparsa, ouviu um baque surdo e um resmungo. “Boca-de-fogo” tentou se levantar e bateu com a cabeça no teto do confessionário. O ladrão, mesmo sem enxergar um palmo a sua frente, correu em direção à sacristia tropeçando em tudo que se encontrava pelo caminho.
   - Mas que diabos acha que está fazendo, seu imbecil?!
   - Eu te disse que tinha assombração aqui na igreja... eu te disse!! - Gaguejou o comparsa apavorado.
   - Que assombração?
   - Eu vi... tava sentado no banco com uma coisa branca na cabeça.
   - Tem certeza de que não era o padre?
   - Tenho sim, era um assombração horroroso com umas coisa assim na cabeça. - Insistiu o infeliz todo esbaforido. - Eu te disse que era pecado roubar igreja. Vamo embora daqui!
   Tião “boca-de-fogo” estava em pânico com toda aquela confusão no escuro. Pensava ser o fantasma do Isidoro lhe assombrando.
   - Mas, por que diacho fui desafiar o cabra do Isidoro? Você é mesmo muito burro, Tião. Devia ter ficado quieto no seu canto, mas não, tinha que desafiar o fantasma. - Resmungava o infeliz ouvindo os gritos que vinham de fora. _ E como se num bastasse, esse povaréu todo lá fora, querendo me esfolar vivo.
   Tião não sabia o que era pior: enfrentar a ira do escravo Isidoro ou se acovardar diante do povo de Curralin.
   - Dos males o menor. - Pensou. Afinal de contas, levar os outros no bico era com ele mesmo, mas tinha que estar muito vivo pra cair na sua lábia, o que não era o caso do Isidoro, ainda mais que o assombração do cabra da peste tinha vindo acompanhado pra acertar as contas com ele.
   - É melhor cair fora daqui enquanto é tempo.
   Para o azar de Tião, os ladrões estavam tão assustados quanto ele e pareciam pensar em fugir da mesma forma. Meu Deus, que confusão. Foi um verdadeiro furdunço de tromba-tromba e gritos na escuridão da capela.
   Ao ouvir a barulhada, a multidão do lado de fora se calou ansiosa, sem saber o que acontecia no interior da igreja. Estavam mais apavorados do que os cabra dentro da capela e olhavam angustiados à procura da polícia, ou melhor, do único guardinha que tomava conta de todo o lugarejo e só Deus sabia onde ele estaria dormindo àquela hora.   
   De repente a porta se abriu violentamente e os dois bandidos praticamente caíram no lado de fora.
   - Fantasma! Fantasma!! - Gritavam os ladrões assustados.
   Tião vendo a claridade da porta e ouvindo aquela gritaria, saiu tão rápido como um peido, quase ao mesmo tempo que os meliantes e deparou com eles sendo agarrados pelos moradores. Sem entender o que se passava, tentou se esquivar da multidão que vinha pra cima dele, mas logo também foi pego.
   - Não! Não! Eu não fiz nada, por favor. Eu prometo que nunca mais desafio esse tal de Isidoro e...
   - É ele!!! É ele!!! - Gritou alguém e Tião quase se borrou. Zezito o agarrou, enquanto os outros o ajudavam a levantá-lo no ar.
   - É o nosso herói. O cabra mais macho que já apareceu por essas banda. Botô os bandidos pra fora da capela. - Gritou Manuel.
   - Botei?!?    
   - Ele é o nosso herói!! - Gritaram todos.
   - Eu não te disse, Remundão? Só mesmo o Tião pra acabar com a farra desses cabra da peste desrespeitoso. - Falou Manuel se juntando aos amigos, enquanto o povo levava Tião carregado para o bar.
   - S’impolga não, Manuel. Essa história tá muito estranha.
   - Que nada, Remundão. Tião é cabra pra lá de arretado. O homi é macho mermo!
   - Sei não, viu.
   - Oia a cara dele. Ta inté assustado com tanta festança.
   - Tomara. – Concordou Remundão coçando o queixo desconfiado.
   Minutos depois, Tião não cansava de repetir a mesma história que inventou sobre como pegou os bandidos dentro da igreja.
   - Então eu apercebi que os danado tinha entrado na igreja e sem perder tempo, meti os peito na porta e pus a tranca abaixo. Quando vi no meio da escuridão aquelas armas apontadas pra mim, não pensei duas vezes. Dei um salto mortal por cima dos bancos e caí por detrás dos dois. Com um golpe certeiro de “jujits”, desarmei os cabra antes que eles atirasse...
   Enquanto Tião destrinchava sua história maluca, Dona Ambrosina se enlaçou em seu pescoço, toda cheia de mequetreche. A mulher parecia estar com fogo nas entranha de tanto que se esfregava em “boca-de-fogo”.
   - Mais  uma  pra  cair  na  lábia  desse  cabra da peste. - Observou Remundão.
   - Mas o sinhô num aquerdita mesmo nas façanha do Tião, héin? Nem veno com esses zói que tá plantado na sua cara que a terra há de cumê, né? - Defendeu Manuel.
   - S’impolga não, Manuel, que essa história ainda vai dar muito pano pra manga.
   - Tião enfrentou os cabra sozinho na capela do padre Benito e tu ainda tem dúvida da macheza dele?
   - Tá bom, tá bom, Manuel. Vamos deixar como está.
   - Por falá em corage, condé que o “boca-de-fogo” vai subir a serra e enfrentar o escravo Isidoro? - Perguntou Zezito.
   A pergunta do Zé caiu como uma bomba no boteco do Manuel e o silêncio sepulcral que se fez de repente, pegou Tião de calça curta. Coitado do infeliz, por essa ele não esperava. Logo agora que o mal-entendido com os bandidos o havia transformado no herói do lugar, tinha que aparecer o estrupício do Zezito pra lembrar do desafio que ele fizera contra o bendito escravo.
   - Ô xente, vamo dá um desconto pro homi aqui, uai. Afinal, ele enfrentou sozinho os bandido e salvou a capela do padre Benito. - Disse Manuel percebendo o aperto de Tião e todos olharam para ele com cara de tacho como se esperassem uma resposta. Mas o infeliz perdera até as forças para abrir a boca. Sorte dele estar em Curralin, lugar de gente boa, simples, porém sábia. Quando a gente acha que a vaca tá indo pro brejo, olha a salvação chegando. Antes mesmo que o “boca-de-fogo” conseguisse abrir a boca, Dona Ambrosina se adiantou e foi logo dizendo:
   - É isso mesm! Inquanto ocês ficaro tudo do lado de fora da capela do padre Benito isperano os bandido saí, Tião intrô lá sozin e dispinguelô supapo pra tudo que é lado. E agora ocês num vai dá discanso pro homi nem hoje que é feriado? Mais qui bissurdo!! Ocês num tem é coração, vice?
   - E tem mais, amanhã vai ser mais interessante, pois é sexta feira 13. - Disse Tião tentando ganhar tempo sem perder a pose.
   - Mas... oquequiss tem a ver com  o   escravo  Isidoro? - Perguntou Zezito.
   - E num é dia de azar? É na sexta feira 13 que os assombração fica tudo ouriçado, ué. E eu, Tião “boca-de-fogo”, vô botá o danado pra correr de volta pra tumba, viu seus cambada de cabra medroso? - Gritou Tião, sabendo que ainda ia se arrepender do que acabara de falar, mas não queria que desconfiassem de nada.
   - E por que não? Assim dá mais tempo pra gente tomar mais umas cachaça margosa, né pessoal? Ei, Manuel, tá esperando o quê pra encher o copo vazio do nosso herói? - Gritou um caboclo encostado no balcão e logo todo mundo já havia esquecido do tal desafio.
   Dessa vez Tião escapou por um fio. Faltou muito pouco para ele não dar com os burros n’água na frente de toda aquela gente. Porém, ele não era cabra de se abalar assim tão facilmente não. Caboclo vivido, cheio de maracutaias, tinha sempre uma carta escondida na manga. Certamente ia dar um jeitinho de se sair bem daquela enrascada que se metera.
   Enquanto todos pareciam estar se divertindo com sua bravura, o cabra saiu de fininho e foi até os fundos da pocilga do Manuel, onde o mesmo espetava o garfo numas linguiças rosadas sobre a chapa quente. Remundão ficava só de butuca. Sabia que tinha treta naquela prosa e ele ainda ia descobrir.
   Minutos depois, “boca-de-fogo” voltou de mansinho, como quem não quer nada, tentando disfarçar para não chamar a atenção sobre sua pessoa.
   - Aí tem coisa... - Resmungou Remundão.
   - Oquecocê disse?
   - S’impolga não, Zé. Só tava aqui matutando com os meus botões.
   Assim que fechou a boca, Manuel se aproximou de Ambrosina, disse-lhe alguma coisa ao pé do ouvido e saiu em seguida.
   Remundão não perdeu tempo e saiu logo atrás.
   - Ei, Manuel! - Chamou ele apertando o passo para se aproximar do amigo.
   - Quêcocê tá fazendo aqui, homi de Deus?
   - S’impolga não, Manuel. Só quero saber o quê ocês dois tão tramando.
   - Deixa de sê besta, sô. - Replicou o dono do boteco meio desconfiado. - Tamo tramando nada não, homi. Só vou buscar umas muda de roupa...
   - A essa hora?!? Já tá quase amanhecendo...
   - E é por isso mesmo. A missa na capela começa bem cedinho e eu num posso ir assim maltrapio, né? - Justificou Manuel.
   - E o que ocê e o Tião tavam tramando lá no fundo do boteco?
   - Tava tramando nada não, Remundão. Tião tava querendo saber em que pé tava as aposta, uai. Só isso.
   - Se é o que diz... - Respondeu desconfiado. “S’impolga não, Remundão, nesse mato tem cachorro e  tu  ainda   vai   descobrir   quem  é   o  caçador”. - Pensou.
   No dia seguinte quando tudo parecia estar pronto para Tião subir a serra, um cabra baixinho e esquisito usando chapéu de vaqueiro e uma arma que mais parecia um canhão, acompanhado por dois soldados meio desajeitados entrou no boteco do Manuel e gritou:
   - Atenção todo mundo! Quero saber tim-tim por tim-tim essa história de cabra macho escarafunchar o cruzeiro do Isidoro. Ninguém vai subir coisica nenhuma de serra até o cruzeiro do Isidoro.
   - Mas delegado...
   - Nada de mas, é ordem do prefeito. O cruzeiro é patrimônio público histórico e quem descumprir vai pro xilindró.
   - S’impolga não delegado, afinal o prefeito também fez “apostinha” dele, uai. - Disse Remundão dando uma piscadela para os amigos.
   - O prefeito? É mesmo? E como é tá o rateio? - Perguntou o delegado em voz baixa, interessado.
   - Dez por um contra o Tião.
   - E ocês acham que ele tem coragem mesmo de enfrentar o assombração do Isidoro?
   - Ô doutô, dêxa eu aporveitá pra fazer uma fezinha. Toma aqui minha parte. - Disse um dos soldados estendendo a mão cheia de notas amassadas.
   - Quê que é isso, soldado? Tá querendo ser preso também? 
   - Se inté o sô prefeito já agarantiu  sua   fezinha,  uai!? - Retrucou o subordinado.
   - Deixa de prosa soldado e vá prender esse tal de Tião.
   - Muito bem, cambada! Cês tem cinco segundos para me dizer onde está esse tal de Tião ou eu vô levá todo mundo pro xilindró. - Gritou o soldado todo petulante.
   - Mas  que  diabos  acha  que     fazendo,    soldado? – Interpelou o delegado.
   - É que eu vi isso num filme, chefe e rapidim o cabra apareceu.
   - Era só o que me faltava.              
   - Por falar nisso, cadê o “boca-de-fogo” que inté agora num apareceu? - Perguntou Manuel olhando em volta.
   - Apareceu não? Dê uma olhada no mictório, soldado!
   - Miqui o quê?
   - Mictório, soldado. “Casinha”, banheiro, entendeu homem de Deus?
   - Sim, sinhô! - Respondeu o soldado dando mixôxo.
   - Hei delegado, o Manuel tem razão, Tião ainda não deu o ar da graça aqui não!
   - Tem certeza disso, cidadão? - Perguntou o soldado peitando o cabra que falara.
   - Sim senhor.
   - Hei chefe, posso dar um jeito nisso e...
   - Vamo embora, soldado. - Disse o delegado deixando o boteco do Manuel sem levar Tião “boca-de-fogo”, que até aquela hora não tinha dado sinal de vida. Mas prometeu prendê-lo antes que subisse a serra em busca dos diamantes do Isidoro.


                                                              Continua na próxima semana!!!!