Capítulo – 04
Desafiando o fantasma
O dia mal
tinha clareado e as ruas de Curralin foram tomadas por um grande alvoroço de
gente. Um zum-zum-zum danado de futrica.
Todo mundo assuntava curioso, o
porquê do boteco do Manuel ficar fechado ate àquela hora e ninguém sabia onde o
infeliz tinha se metido. O cabra tinha simplesmente se escafedido.
- Num tô gostando nadica dessa história do
Manuel tê sumido não, viu? - Resmungou Remundão preocupado. - Primeiro, foi o Tião
e agora o Manuel também desaparece? Tem muito caroço nesse angu.
- Deve de ter dormido mais que a cama, uai.
Afinal, ele também é fí de Deus e merece descansar inté mais tarde. - Disse um
dos curiosos.
- Os moleque já foram lá e num encontraram
nem sinal do infeliz. - Informou Chicão coçando a cabeça por debaixo do chapéu
de couro.
- Tão falando aí que eles foram abduzidos
pelos homenzinhos verdes.
- Xiii, isso ainda vai dar história...
- Num se avexe
não, sô. Ele
deve de ta por aí
mesmo calangado numa nega quarquer
inté agora! - Arriscou Zezito tentando despreocupar
os amigos.
- S’impolga não, Zezito. Vamos nos dividir e
procurar o Manuel lá pelas bandas do rio das cobra. - Sugeriu Remundão tomando
a frente do grupo.
Quando o grupo se preparava para deixar a
porta do boteco, Tião surgiu como uma alma penada que tinha acabado de desencarnar.
- Bo, “boca-de-fogo”? É tu mesmo, cabra da
peste?? Oncetava homi de Deus? - Gaguejou Zezito com os olhos arregalados.
- E num sou? - Estranhou ele percebendo os
olhares de espanto em sua direção. - Que pergunta mais danada de boba, sô. É
claro que sou eu, uai. E porquê cê quer sabê oncôtava?
Ao perceber que metade dos moradores de
Curralin estava reunida à porta do boteco do Manuel, Tião parou desconfiado.
- Vixi Maria... que povaréu é esse daì?
Aconteceu alguma?
- Ô xente, o Manuel se escafedeu e ninguém sabe onde o homi se meteu. - Informou Zezito se
aperreando com o desentendimento de “boca-de-fogo”.
- O Manuel sumiu? Mas onde é que o danado se
escondeu?
- É isso que a gente quer saber. - Disse Remundão
acendendo um cigarro de palha. - Não foi para casa ontem e ninguém viu ele
hoje... íamos justamente procurar por ele lá pelas bandas do rio.
- Hummm... eu num acho que ele vai ta lá “pela aquelas” bandas não. - Resmungou “boca-de-fogo”
meio acabrunhado.
- Cumé que tu sabe? - Perguntou Zezito
desconfiado.
- Por acaso tu sabe onquetá? - Perguntou Remundão.
- Sabê, sabe... sei não. Rapaz, será que eu
matei o coitado de tanto medo?
- Que prosa mais discabida é essa homi de
Deus?
- Ontem à noite, eu queria pregar uma peça
no Manuel e fiquei esperando por ele perto do mangueirão da praça. Quando ele
passou, fingi ser o fantasma do Isidoro e acendi um candeeiro velho que achei
jogado no meio das bugiganga do meu tio. O cabra desembestou ladeira abaixo
numa correria, que eu pensei até que ele fosse voar. Confessou “boca-de-fogo” se
divertindo com o susto que havia pregado no amigo.
- Que malvadeza discabida foi essa, sô?
- Diacho de brincadeira mais boba.
- Mas se o Manuel descambou ladeira abaixo, prondé
que ele foi? - Perguntou Remundão curioso.
- Ué, Deve de tá correndo até agora de tanto
medo, uai. - Brincou “boca-de-fogo”.
- Tu num devia abusar dessas coisas não,
rapaz.
- Pobre Manuel, deve de tá todo apavorado
com essa brincadeira de mau gosto. - Lamentou Zezito penalizado.
- S’impolga não, Zé. Nós vamos trazer
ele de volta. - Consolou Remundão batendo no ombro do
amigo.
- Ocê num devia de ter feito uma coisa dessa
com o Manuel, Tião.
- Hei, me desculpem, né? Eu só queria fazer
uma brincadeirinha com o meu amigo Manuel, nada mais. – Arrependeu Tião baixando a cabeça envergonhado.
- Rapá, tu num compriende que uma hora inda
vai acabar matando alguém com essas brincadeiras descabidas?
- S’impolga não, pessoal. - Interveio Remundão
apaziguando a situação. - Num vamo apoquentar as ideia, não. O Tião assustou o
pobre do Manuel, então nada mais justo que ele mesmo vá procurar por ele, né
mesmo?
- Está bem, está bem. - Concordou sem graça.
- Remundão tem razão. É melhor eu mesmo ir buscar o meu amigo e pedir
desculpas.
Apesar de toda a valentia da qual se gabava,
Tião ficou bastante aperreado com o
resultado da brincadeira.
- O tal candeeiro que tu deixou na porta do
boteco é mesmo do escravo Isidoro? - Perguntou Chicão temeroso.
- Claro que não. Queria só mostrar procês
que isso tudo é só um monte de crendice “das boba”.
- E escolheu logo o Manuel que vai s’imbora
tarde da noite? Rapá, num brinca com isso não, sô. É mió ocê ir ligeiro
procurar ele no cruzeiro da serra, antes que aconteça uma desgraceira quarquer.
- Aconselhou Zezito.
- Mas, por que no cruzeiro?
- Sei lá, vai por aí.
- Eu vou mesmo. - Concordou Tião botando o
pé na estrada, rumo ao cruzeiro, enquanto Remundão e os outros se espalhavam
pelo lugarejo à procura do amigo.
No fim da tarde, depois de muito procurar, todos
se encontraram na porta do boteco do Manuel muito cansados e desanimados. Foi
quando alguém trouxe a boa notícia de que o cabra do Manuel havia se escondido
na casa do padre.
Ao saber que tudo não passou de uma
brincadeira de mau gosto feita pelo desmiolado do Tião, o pobre do Manuel se
acalmou e resolveu abrir o boteco.
Assim que chegou, foi recebido pelos amigos,
que o rodearam e o abraçaram com alegria. Tião foi logo pedindo desculpas pela
brincadeira.
- E pra compensar o susto que dei no meu amigo,
hoje a bebida é por minha conta. - Gritou ele com veemência. Mais do que
depressa, todos correram para encher os copos.
- Esse Tião num indireita mesm. Mas é um
cabra pra lá de porreta, hein? - Disse Zezito satisfeito com a atitude do “boca-de-fogo”.
- Ainda bem, né?
- Hei Manuel, ocê sabe que foi só uma
brincadeirinha, num sabe? - Disse “boca-de-fogo” se aproximando do balcão.
- Vixi Maria! Ocê me pregou um baita susto
mesmo, hein? Quando vi aquela coisa dos diabo caminhando pro meu lado, me
borrei todo. E quando tu acendeu aquela vela
então, vixi mãe de Deus!
- Mas que vela que nada, sô. Aquele era o
candeeiro do escravo, homem.
- C-Candeeiro?! Do que é que tu tá falando, homi
de Deus?
- O candeeiro do tal Isidoro... eu deixei
ele ali no prego das gaiola. Tu num viu? - Perguntou Tião vendo o pavor
estampado na cara de Manuel.
- Cumé que eu ia vê, se eu tava na casa do
padre, meu Jesus Cristinho. - Respondeu Manuel quase em desespero.
-
S’impolga não, Manuel. - Interviu Remundão tomando parte na conversa. - O
candeeiro que o Tião deixou na sua porta era só um lampião velho. Vai ver,
alguém guardou noutro lugar.
- Mas quem foi o doido que teve coragem pra
mexer naquela desgraceira?
- Manuel, tu num levou o candeeiro de volta
pra serra não? - Insistiu Tião se divertindo, já que todos estavam tão
preocupados com o sumiço do Manuel que nem prestaram atenção quando Remundão
disse que o candeeiro foi encontrado nas tralhas do tio.
- Mas nem que a vaca tussa, eu ia ponhá a
mão naquela coisa.
- Então... quem foi?? - Tião mal acabara de
falar e todos se entreolharam preocupados. Alguém havia retirado o candeeiro da
porta do boteco e consumido com ele. Acabrunhados, os cabra deram mais alguns
passos até a rua, já ganhando a noite àquela hora e olharam para o alto da
serra, onde ficava o cruzeiro do Isidoro. Não deu outra, lá estava o candeeiro
com sua chama amarelada pra quem quisesse ver.
Tião olhava abestalhado a reação de todos, sem acreditar no que estava vendo.
Chicão e Zezito pareciam duas estátuas fincadas no chão, de tão abobalhados que
estavam. Manuel, coitado, não parava de fazer o que parecia ser um sinal da
cruz e resmungar baixinho. Remundão tratou de voltar ao boteco e virou de uma
só vez a cachaça do copo, sem dizer nada.
Assim que todos voltaram para o boteco, estavam
ainda aturdidos das ideia, como se tivessem acabado de chegar de um velório
qualquer. Exceto Tião, que não acreditava na inocência dos amigos e resolveu
dar corda naquela história descabida que eles insistiam em acreditar.
- Num vão me dizer que ocês vão ficar com
essas cara de jirimum, só porque alguém levou o tal candeeiro de volta pro
cruzeiro, né?
- Rapá, será cocê ainda num entendeu a
gravidade do causo? - Ponderou Zezito. - Ninguém aqui do vilarejo ia de tê
corage de ponhá as mão nas coisa do Isidoro não, homi do céu.
- Mas alguém levou ele de volta.
- Se num foi ocê mesm, Tião, pode saber que
foi o “próprio” que veio buscar o candeeiro.
- Bobagem. Se o cabra já morreu, morreu e
pronto.
- Eita cabra mais avechado esse “boca-de-fogo”!
- S’impolga não, Tião. Tu não sabe do que é
capaz o cabra que morre aperreado como o escravo Isidoro morreu. Um dia tu inda
vai desandar das perna e acreditar no que o povo tá dizendo.
- Pois eu vou dizer uma coisa. - Falou Tião
estufando o peito. - Amanhã mesmo, vou subir aquela serra de novo, tocaiar esse
cabra da peste e quando ele aparecer, vou trazer o danado até aqui só pra
provar pr’ocês que tudo isso num passa de alguém querendo meter medo no povo de
Curralim.
- E se num for ninguém? - Inquiriu Chicão
desafiador.
- Se num for ninguém assim que nem que nós,
de carne e osso? - Riu “boca-de-fogo”. - Então não vai ser mais ninguém.
- Ocê num sabe o que tá falando, rapaz.
- Tão achando que eu acredito nessa história
de fantasma e assombração? Tenho medo não, sô, e sabe por quê? Porque eu sou é
macho e num vai ser um cabra defunto que vai me fazer afrouxar não, entendeu?
Se tiver algum tesouro lá, vou trazer e botar aqui em cima igual tá esse copo
de cachaça. - Prometeu Tião.
Para assombro de todos, ele mal acabara de
falar, o copo de cachaça estalou misteriosamente e se partiu ao meio,
derramando todo o líquido sobre o balcão.
- Meu Jesus Cristo!!! Meu Deus do céu! Créindeuspadi!!
- Gritou Manuel saltando para trás, enquanto se desembestava a fazer o sinal
da cruz, assustado. - Tira essa coisa daqui, meu Deus
do céu!!
Os cabra ficaram tão abestados, que quase
perderam a voz. O copo tinha se partido como que atravessado pela faca afiada
do “coisa ruim” lá de baixo. Remundão
quase deixa o toco de cigarro cair da boca. Por sorte o danado ficou pendurado
no beiço. Chicão e Zezito pareciam duas estátuas fincadas no chão. Os olhos esbutucados e brancos que nem cera.
- Ta vendo, homi? Isso é um aviso, num se
apercebeu que num deve mexer com esse trem dos inferno? - Alertou Chicão sem tirar o olho do
copo quebrado. - Esquece essa estória de mexer com o Isidoro de uma vez, homi
de Deus.
- Ocês tão é variando das ideia! - Replicou Tião
“boca-de-fogo”. - Foi só uma coincidência das grandes. Se eu fui lá uma vez e
peguei o candeeiro, posso muito bem voltar lá e pegar o tal tesouro, uai.
- S’impolga não, rapaz. Num mexe com fogo que
tu se queima...
- Pois eu vou provar pr’ocês que isso tudo é
só balela, conversa torta pra boi dormir.
- Ocê num tem que provar nada pra ninguém
não, homi. Larga mão disso e deixa o escravo Isidoro sossegado no seu canto,
sô. - Aconselhou Zezito temeroso.
Apesar dos conselhos, nem com reza iam
conseguir fazer com que Tião desistisse da ideia destrambelhada de se imbicar serra acima em busca dos
diamantes. Por fim, largaram a prosa de lado e deixaram “boca-de-fogo” fazer o
que queria. O certo é que já não se tratava mais de mostrar macheza pra “seu”
ninguém e sim evitar a desgraceira da ganância que apoquentava as ideia de todo mundo que ouvia falar de Isidoro e
seus diamantes.
Mais uma vez, Manuel escancarava o sorriso
desdentado ao juntar o dinheiro da féria no final da noite. As notas, danadas
de novinhas amontoadas umas em cima das outras enchiam os olhos do comerciante.
De duas, uma: Ou Tião era um cabra prá lá de
rico ou tinha plantado dinheiro. Por que então se apoquentava tanto com a ideia de pegar os diamantes do Isidoro?
- S’impolga não, homem. - Disse certa vez Remundão.
- Essa gente da cidade grande é assim mesmo. Quanto mais tem, mais quer.
Enfim, isso era outra história. O certo
mesmo era que a notícia sobre o desafio de Tião em subir a serra e pegar os
diamantes, se espalhou como fogo na pólvora por todo o vilarejo e todo mundo
queria ver de perto o tal cabra cheio de macheza, que se atrevia a enfrentar o
escravo mais perverso que já se tinha ouvido falar por aquelas bandas.
Depois daquele dia, Curralin nunca mais fora
a mesma. O lugarejo ficou apinhado de gente que ia se amontoando na porta do
bar do Manuel, querendo ver de perto o cabra que não cansava de se gabar dos
feitos que já tinha peitado vida
afora.
Quem mais estava gostando da ideia era Manuel,
que corria de um lado para outro tentando atender toda aquela gente que se
debandara não se sabe de onde. Parecia dia de festa. Até dona Clotilde que
quase não saía de casa, apareceu por lá vendendo uns quitutes que ela mesma
fazia.
Remundão e seus amigos se espremeram num
canto do bar, enquanto Tião “boca-de-fogo” era rodeado pelos visitantes, que não
cansavam de ouvir suas histórias.
- Que furdunço que virou isso aqui, hein sô?
- Observou Chicão.
- S’impolga não, Chicão. Isso aqui ainda vai
dar muito pano pra manga.
- Tão vendendo inté uns santinho dizendo que
é o “São Tião do Curralin”.
- Que diacho de santo é esse?
- Nunca ouvi falar.
- Quero só ver a cara desse povaréu quando
descobrir que o Tião num passa de um língua solta...
- Tu acha que esse cabra vai bambear das
perna e desistir de subi a serra? - Perguntou Zezito desconfiado.
- S’impolga não, Zé. Esse cabra vai é fincar
no trecho e deixar todo mundo aqui com cara de tacho.
- Acha mesmo, Remundão?
- Mas é claro.
- Se ele teve coragem de pegar o
candeeiro...
- S’impolga não, Zé. O candeeiro qualquer um
pode ir lá em riba da serra e pegar. Quero ver é ele intuiá naquela grota e
sair de lá com os diamantes do Isidoro.
- Cumé que tu sabe que os diamante tão
intuiado na grota? - Perguntou Chicão olhando desconfiado para Remundão.
- Bem... é que... Num é isso que o povo conta, uai? -
Gaguejou Remundão meio sem jeito. Não queria que os amigos soubessem da sua
desventura com os diamantes do Isidoro. Para sorte sua, Manuel se aproximou com
uma garrafa de cachaça.
- Meus amigos... essa é por conta da casa.
- Chegou bem na horinha, hein Manuel?
- Num pensaro quêu ia deixar meus amigos sem
um agrado, né sô? Afinal de contas, se num fosse a aposta que ocês fizero com o
Tião, eu num ia tá vendendo tanto assim, uai. - Justificou o dono do boteco
quase não cabendo em si de tanta alegria.
- Pelocotôveno, Tião nem se alembra mais da
promessa que fez. - Observou Zezito.
- Vai beber tanto, que logo, logo, os
cachorros vão tá lambendo a boca dele na calçada.
- E o Isidoro? Nada.
- S’impolga não, Zé. Do jeito que esse cabra
é metido a valentão, é bem capaz de ele subir aquela serra tropeçando e
escornar no pé do cruzeiro, chamando o Isidoro de meu amor.
Todos riram divertidos e mais uma vez
encheram os copos.
A cada hora que se passava, ia chegando mais
e mais gente, que parecia não caber no pequeno lugarejo. Todo mundo queria ver
a façanha do Tião “boca-de-fogo”. Tinha cabra que nem sabia o que tava
acontecendo, mas assim mesmo, festejava. E como brasileiro que é brasileiro de
verdade não nega o fogo de uma boa folia, lá estava a batucada do “Chega
Chegano” animando aquele povaréu doido que não parava de sambar ali mesmo no
meio da rua.
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