domingo, 8 de julho de 2018

Quarta parte do romance "Aparições e mineirices do Isidoro"


   
   Capítulo – 04
   Desafiando o fantasma
   
   O dia mal tinha clareado e as ruas de Curralin foram tomadas por um grande alvoroço de gente. Um zum-zum-zum danado de futrica. Todo mundo assuntava curioso, o porquê do boteco do Manuel ficar fechado ate àquela hora e ninguém sabia onde o infeliz tinha se metido. O cabra tinha simplesmente se escafedido.
   - Num tô gostando nadica dessa história do Manuel tê sumido não, viu? - Resmungou Remundão preocupado. - Primeiro, foi o Tião e agora o Manuel também desaparece? Tem muito caroço nesse angu.
   - Deve de ter dormido mais que a cama, uai. Afinal, ele também é fí de Deus e merece descansar inté mais tarde. - Disse um dos curiosos.
   - Os moleque já foram lá e num encontraram nem sinal do infeliz. - Informou Chicão coçando a cabeça por debaixo do chapéu de couro.
   - Tão falando aí que eles foram abduzidos pelos homenzinhos verdes.
   - Xiii, isso ainda vai dar história...
   - Num  se  avexe  não,  sô.  Ele  deve  de  ta  por  aí mesmo  calangado  numa   nega  quarquer   inté  agora! - Arriscou Zezito tentando despreocupar os amigos.
   - S’impolga não, Zezito. Vamos nos dividir e procurar o Manuel lá pelas bandas do rio das cobra. - Sugeriu Remundão tomando a frente do grupo.
   Quando o grupo se preparava para deixar a porta do boteco, Tião surgiu como uma alma penada que tinha acabado de desencarnar.
   - Bo, “boca-de-fogo”? É tu mesmo, cabra da peste?? Oncetava homi de Deus? - Gaguejou Zezito com os olhos arregalados.
   - E num sou? - Estranhou ele percebendo os olhares de espanto em sua direção. - Que pergunta mais danada de boba, sô. É claro que sou eu, uai. E porquê cê quer sabê oncôtava?
   Ao perceber que metade dos moradores de Curralin estava reunida à porta do boteco do Manuel, Tião parou desconfiado.
   - Vixi Maria... que povaréu é esse daì? Aconteceu alguma?
   - Ô xente, o Manuel se escafedeu e ninguém sabe onde o homi se meteu. - Informou Zezito se aperreando com o desentendimento de “boca-de-fogo”.
   - O Manuel sumiu? Mas onde é que o danado se escondeu?
   - É isso que a gente quer saber. - Disse Remundão acendendo um cigarro de palha. - Não foi para casa ontem e ninguém viu ele hoje... íamos justamente procurar por ele lá pelas bandas do rio.
   - Hummm... eu num acho que ele vai ta lá “pela aquelas” bandas não. - Resmungou “boca-de-fogo” meio acabrunhado.
   - Cumé que tu sabe? - Perguntou Zezito desconfiado.
   - Por acaso tu sabe onquetá? - Perguntou Remundão.
   - Sabê, sabe... sei não. Rapaz, será que eu matei o coitado de tanto medo?
   - Que prosa mais discabida é essa homi de Deus?
   - Ontem à noite, eu queria pregar uma peça no Manuel e fiquei esperando por ele perto do mangueirão da praça. Quando ele passou, fingi ser o fantasma do Isidoro e acendi um candeeiro velho que achei jogado no meio das bugiganga do meu tio. O cabra desembestou ladeira abaixo numa correria, que eu pensei até que ele fosse voar. Confessou “boca-de-fogo” se divertindo com o susto que havia pregado no amigo.
   - Que malvadeza discabida foi essa, sô?
   - Diacho de brincadeira mais boba.
   - Mas se o Manuel descambou ladeira abaixo, prondé que ele foi? - Perguntou Remundão curioso.
   - Ué, Deve de tá correndo até agora de tanto medo, uai. - Brincou “boca-de-fogo”.
   - Tu num devia abusar dessas coisas não, rapaz.
   - Pobre Manuel, deve de tá todo apavorado com essa brincadeira de mau gosto. - Lamentou Zezito penalizado.
   - S’impolga não, Zé. Nós  vamos  trazer  ele   de  volta. - Consolou Remundão batendo no ombro do amigo.
   - Ocê num devia de ter feito uma coisa dessa com o Manuel, Tião.
   - Hei, me desculpem, né? Eu só queria fazer uma brincadeirinha com  o  meu  amigo Manuel, nada  mais. – Arrependeu Tião baixando a cabeça envergonhado.
   - Rapá, tu num compriende que uma hora inda vai acabar matando alguém com essas brincadeiras descabidas?
   - S’impolga não, pessoal. - Interveio Remundão apaziguando a situação. - Num vamo apoquentar as ideia, não. O Tião assustou o pobre do Manuel, então nada mais justo que ele mesmo vá procurar por ele, né mesmo?
   - Está bem, está bem. - Concordou sem graça. - Remundão tem razão. É melhor eu mesmo ir buscar o meu amigo e pedir desculpas.
   Apesar de toda a valentia da qual se gabava, Tião ficou bastante aperreado com o resultado da brincadeira.
   - O tal candeeiro que tu deixou na porta do boteco é mesmo do escravo Isidoro? - Perguntou Chicão temeroso.
   - Claro que não. Queria só mostrar procês que isso tudo é só um monte de crendice “das boba”.
   - E escolheu logo o Manuel que vai s’imbora tarde da noite? Rapá, num brinca com isso não, sô. É mió ocê ir ligeiro procurar ele no cruzeiro da serra, antes que aconteça uma desgraceira quarquer. - Aconselhou Zezito.
   - Mas, por que no cruzeiro?
   - Sei lá, vai por aí.
   - Eu vou mesmo. - Concordou Tião botando o pé na estrada, rumo ao cruzeiro, enquanto Remundão e os outros se espalhavam pelo lugarejo à procura do amigo.
   No fim da tarde, depois de muito procurar, todos se encontraram na porta do boteco do Manuel muito cansados e desanimados. Foi quando alguém trouxe a boa notícia de que o cabra do Manuel havia se escondido na casa do padre.
   Ao saber que tudo não passou de uma brincadeira de mau gosto feita pelo desmiolado do Tião, o pobre do Manuel se acalmou e resolveu abrir o boteco.
   Assim que chegou, foi recebido pelos amigos, que o rodearam e o abraçaram com alegria. Tião foi logo pedindo desculpas pela brincadeira.
   - E pra compensar o susto que dei no meu amigo, hoje a bebida é por minha conta. - Gritou ele com veemência. Mais do que depressa, todos correram para encher os copos.
   - Esse Tião num indireita mesm. Mas é um cabra pra lá de porreta, hein? - Disse Zezito satisfeito com a atitude do “boca-de-fogo”.
   - Ainda bem, né?
   - Hei Manuel, ocê sabe que foi só uma brincadeirinha, num sabe? - Disse “boca-de-fogo” se aproximando do balcão.
   - Vixi Maria! Ocê me pregou um baita susto mesmo, hein? Quando vi aquela coisa dos diabo caminhando pro meu lado, me borrei todo. E quando  tu acendeu aquela vela então, vixi mãe de Deus!
   - Mas que vela que nada, sô. Aquele era o candeeiro do escravo, homem.
   - C-Candeeiro?! Do que é que tu tá falando, homi de Deus?
   - O candeeiro do tal Isidoro... eu deixei ele ali no prego das gaiola. Tu num viu? - Perguntou Tião vendo o pavor estampado na cara de Manuel.
   - Cumé que eu ia vê, se eu tava na casa do padre, meu Jesus Cristinho. - Respondeu Manuel quase em desespero.
   - S’impolga não, Manuel. - Interviu Remundão tomando parte na conversa. - O candeeiro que o Tião deixou na sua porta era só um lampião velho. Vai ver, alguém guardou noutro lugar.
   - Mas quem foi o doido que teve coragem pra mexer naquela desgraceira?
   - Manuel, tu num levou o candeeiro de volta pra serra não? - Insistiu Tião se divertindo, já que todos estavam tão preocupados com o sumiço do Manuel que nem prestaram atenção quando Remundão disse que o candeeiro foi encontrado nas tralhas do tio.
   - Mas nem que a vaca tussa, eu ia ponhá a mão naquela coisa.
   - Então... quem foi?? - Tião mal acabara de falar e todos se entreolharam preocupados. Alguém havia retirado o candeeiro da porta do boteco e consumido com ele. Acabrunhados, os cabra deram mais alguns passos até a rua, já ganhando a noite àquela hora e olharam para o alto da serra, onde ficava o cruzeiro do Isidoro. Não deu outra, lá estava o candeeiro com sua chama amarelada pra quem quisesse ver.
   Tião olhava abestalhado a reação de todos, sem acreditar no que estava vendo. Chicão e Zezito pareciam duas estátuas fincadas no chão, de tão abobalhados que estavam. Manuel, coitado, não parava de fazer o que parecia ser um sinal da cruz e resmungar baixinho. Remundão tratou de voltar ao boteco e virou de uma só vez a cachaça do copo, sem dizer nada.
   Assim que todos voltaram para o boteco, estavam ainda aturdidos das ideia, como se tivessem acabado de chegar de um velório qualquer. Exceto Tião, que não acreditava na inocência dos amigos e resolveu dar corda naquela história descabida que eles insistiam em acreditar.
   - Num vão me dizer que ocês vão ficar com essas cara de jirimum, só porque alguém levou o tal candeeiro de volta pro cruzeiro, né?
   - Rapá, será cocê ainda num entendeu a gravidade do causo? - Ponderou Zezito. - Ninguém aqui do vilarejo ia de tê corage de ponhá as mão nas coisa do Isidoro não, homi do céu.
   - Mas alguém levou ele de volta.
   - Se num foi ocê mesm, Tião, pode saber que foi o “próprio” que veio buscar o candeeiro.
   - Bobagem. Se o cabra já morreu, morreu e pronto.
   - Eita cabra mais avechado esse “boca-de-fogo”!
   - S’impolga não, Tião. Tu não sabe do que é capaz o cabra que morre aperreado como o escravo Isidoro morreu. Um dia tu inda vai desandar das perna e acreditar no que o povo tá dizendo.  
   - Pois eu vou dizer uma coisa. - Falou Tião estufando o peito. - Amanhã mesmo, vou subir aquela serra de novo, tocaiar esse cabra da peste e quando ele aparecer, vou trazer o danado até aqui só pra provar pr’ocês que tudo isso num passa de alguém querendo meter medo no povo de Curralim.
   - E se num for ninguém? - Inquiriu Chicão desafiador.
   - Se num for ninguém assim que nem que nós, de carne e osso? - Riu “boca-de-fogo”. - Então não vai ser mais ninguém.
   - Ocê num sabe o que tá falando, rapaz.
   - Tão achando que eu acredito nessa história de fantasma e assombração? Tenho medo não, sô, e sabe por quê? Porque eu sou é macho e num vai ser um cabra defunto que vai me fazer afrouxar não, entendeu? Se tiver algum tesouro lá, vou trazer e botar aqui em cima igual tá esse copo de cachaça. - Prometeu Tião.
   Para assombro de todos, ele mal acabara de falar, o copo de cachaça estalou misteriosamente e se partiu ao meio, derramando todo o líquido sobre o balcão.
   - Meu Jesus Cristo!!! Meu Deus do céu! Créindeuspadi!! - Gritou Manuel saltando para trás, enquanto se desembestava  a  fazer   o   sinal    da    cruz,    assustado. - Tira essa coisa daqui, meu Deus do céu!!
   Os cabra ficaram tão abestados, que quase perderam a voz. O copo tinha se partido como que atravessado pela faca afiada do “coisa ruim” lá de baixo. Remundão quase deixa o toco de cigarro cair da boca. Por sorte o danado ficou pendurado no beiço. Chicão e Zezito pareciam duas estátuas fincadas no chão. Os olhos esbutucados e brancos que nem cera.
   - Ta vendo, homi? Isso é um aviso, num se apercebeu que num  deve  mexer com esse trem dos  inferno? - Alertou Chicão sem tirar o olho do copo quebrado. - Esquece essa estória de mexer com o Isidoro de uma vez, homi de Deus.
   - Ocês tão é variando das ideia! - Replicou Tião “boca-de-fogo”. - Foi só uma coincidência das grandes. Se eu fui lá uma vez e peguei o candeeiro, posso muito bem voltar lá e pegar o tal tesouro, uai.
   - S’impolga não, rapaz. Num mexe com fogo que tu se queima...
   - Pois eu vou provar pr’ocês que isso tudo é só balela, conversa torta pra boi dormir.
   - Ocê num tem que provar nada pra ninguém não, homi. Larga mão disso e deixa o escravo Isidoro sossegado no seu canto, sô. - Aconselhou Zezito temeroso.
   Apesar dos conselhos, nem com reza iam conseguir fazer com que Tião desistisse da ideia destrambelhada de se imbicar serra acima em busca dos diamantes. Por fim, largaram a prosa de lado e deixaram “boca-de-fogo” fazer o que queria. O certo é que já não se tratava mais de mostrar macheza pra “seu” ninguém e sim evitar a desgraceira da ganância que apoquentava as ideia de todo mundo que ouvia falar de Isidoro e seus diamantes.
   Mais uma vez, Manuel escancarava o sorriso desdentado ao juntar o dinheiro da féria no final da noite. As notas, danadas de novinhas amontoadas umas em cima das outras enchiam os olhos do comerciante.
   De duas, uma: Ou Tião era um cabra prá lá de rico ou tinha plantado dinheiro. Por que então se apoquentava tanto com a ideia de pegar os diamantes do Isidoro?
   - S’impolga não, homem. - Disse certa vez Remundão. - Essa gente da cidade grande é assim mesmo. Quanto mais tem, mais quer.
   Enfim, isso era outra história. O certo mesmo era que a notícia sobre o desafio de Tião em subir a serra e pegar os diamantes, se espalhou como fogo na pólvora por todo o vilarejo e todo mundo queria ver de perto o tal cabra cheio de macheza, que se atrevia a enfrentar o escravo mais perverso que já se tinha ouvido falar por aquelas bandas.
   Depois daquele dia, Curralin nunca mais fora a mesma. O lugarejo ficou apinhado de gente que ia se amontoando na porta do bar do Manuel, querendo ver de perto o cabra que não cansava de se gabar dos feitos que já tinha peitado vida afora.
   Quem mais estava gostando da ideia era Manuel, que corria de um lado para outro tentando atender toda aquela gente que se debandara não se sabe de onde. Parecia dia de festa. Até dona Clotilde que quase não saía de casa, apareceu por lá vendendo uns quitutes que ela mesma fazia.
   Remundão e seus amigos se espremeram num canto do bar, enquanto Tião “boca-de-fogo” era rodeado pelos visitantes, que não cansavam de ouvir suas histórias.  
   - Que furdunço que virou isso aqui, hein sô? - Observou Chicão.
   - S’impolga não, Chicão. Isso aqui ainda vai dar muito pano pra manga.
   - Tão vendendo inté uns santinho dizendo que é o “São Tião do Curralin”.
   - Que diacho de santo é esse?
   - Nunca ouvi falar.
   - Quero só ver a cara desse povaréu quando descobrir que o Tião num passa de um língua solta...
   - Tu acha que esse cabra vai bambear das perna e desistir de subi a serra? - Perguntou Zezito desconfiado.
   - S’impolga não, Zé. Esse cabra vai é fincar no trecho e deixar todo mundo aqui com cara de tacho.
   - Acha mesmo, Remundão?
   - Mas é claro.
   - Se ele teve coragem de pegar o candeeiro...
   - S’impolga não, Zé. O candeeiro qualquer um pode ir lá em riba da serra e pegar. Quero ver é ele intuiá naquela grota e sair de lá com os diamantes do Isidoro.
   - Cumé que tu sabe que os diamante tão intuiado na grota? - Perguntou Chicão olhando desconfiado para Remundão.
   - Bem... é que... Num é isso que  o  povo   conta,   uai? - Gaguejou Remundão meio sem jeito. Não queria que os amigos soubessem da sua desventura com os diamantes do Isidoro. Para sorte sua, Manuel se aproximou com uma garrafa de cachaça.
   - Meus amigos... essa é por conta da casa.
   - Chegou bem na horinha, hein Manuel?
   - Num pensaro quêu ia deixar meus amigos sem um agrado, né sô? Afinal de contas, se num fosse a aposta que ocês fizero com o Tião, eu num ia tá vendendo tanto assim, uai. - Justificou o dono do boteco quase não cabendo em si de tanta alegria.
   - Pelocotôveno, Tião nem se alembra mais da promessa que fez. - Observou Zezito.
   - Vai beber tanto, que logo, logo, os cachorros vão tá lambendo a boca dele na calçada.
   - E o Isidoro? Nada.
   - S’impolga não, Zé. Do jeito que esse cabra é metido a valentão, é bem capaz de ele subir aquela serra tropeçando e escornar no pé do cruzeiro, chamando o Isidoro de meu amor. 
   Todos riram divertidos e mais uma vez encheram os copos.
   A cada hora que se passava, ia chegando mais e mais gente, que parecia não caber no pequeno lugarejo. Todo mundo queria ver a façanha do Tião “boca-de-fogo”. Tinha cabra que nem sabia o que tava acontecendo, mas assim mesmo, festejava. E como brasileiro que é brasileiro de verdade não nega o fogo de uma boa folia, lá estava a batucada do “Chega Chegano” animando aquele povaréu doido que não parava de sambar ali mesmo no meio da rua.  
                               

                                                                                                                                  Continua na próxima semana...




  



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