domingo, 5 de agosto de 2018

Oitava e última parte do romance "Aparições e mineirices do Isidoro"



  Capítulo – 08
   De frente com o “dito cujo”

   Exatamente a 01h00min da manhã, o sino da capela badalou três vezes e assim que ouviu, “boca-de-fogo” passou a mão nas tralhas e ganhou a praça do chafariz. Logo o povo começou a aplaudir, acompanhando o cabra pelas ruelas estreitas até o boteco do Manuel. Tião caminhava sorridente e cheio de pompa, estendendo o lampião velho e o saco de “diamantes” sobre a cabeça para provar sua valentia.
   - O Tião tá chegando! O Tião tá chegando na pracinha do chafariz! - Gritou alguém entrando no boteco do Manuel em disparada, enquanto todos se levantavam e corriam pra porta só para ver o cabra.
   - Esse Tião é porreta por demais mesmo, hein!  Bem que ele disse que num tinha medo do  escravo   Isidoro. - Disse Manuel orgulhoso pelo feito do amigo.
   - S’impolga não Manoel, esse cabra tem muita história pra contar.
   - Ô Remundão, deixa de prosa frouxa, homi. O cabra foi num pé e voltou no outro e tu ainda discunfia de sua macheza, sô?
   - Remundão tem razão. - Indagou Sandoval coçando o queixo. - Subir a serra até o cruzeiro do Isidoro naquela trilha pedregosa e ainda no escuro leva muito tempo.
   - Quem sabe o Isidoro não deu uma carreira nele morro abaixo e o cabra chegou aqui mais ligeiro? 
   - Sei não, viu. Ainda vai aparecer muito caroço nesse angu.
   Assim que o Tião passou pelo boteco do Manuel em direção ao carro de som, foi ovacionado com uma salva de palmas e muita gritaria. Paulinho violeiro sapecou a mão no microfone e pediu que o cabra subisse ao palco, porém, um silêncio sepulcral tomou conta do lugar e acreditem ou não, lá estava ele, o assombração do escravo Isidoro em pessoa, ou não. A figura era tão feia, mas tão feia que os que não desembestaram rua afora de medo, ficaram ali plantados que nem estátuas, sem conseguir arredar pé do lugar. Tião olhou de butuca o que tava acontecendo e quando pregou os olhos no fantasma, suas pernas bambearam e uma baita tremedeira tomou conta do cabra, que já não tinha nem mais força pra correr.
   - Meu Deus do céu, minha Nossa Senhora, meu Jesus Cristo, me ajuda!!! - Resmungou Tião sem tirar o olho do coisa ruim.
   Dona Zefinha assim que viu o fantasma desmaiou na porta do boteco do Manuel e lá ficou, já que ninguém tinha coragem pra se mexer.
   - Tião!! Seu mentiroso!! - Gritou Isidoro. - Tu vai se arrepender de ter me desafiado, cabra da peste! Quero tudinho os meus diamantes agora.
   Quando ouviu o seu nome, “boca-de-fogo” quase se borrou nas calças.
   - Cumé que esse infeliz sabe o meu nome, meu Jesus cristin? - Perguntou Tião olhando para os amigos na porta do boteco.
   Sandoval, neguin esperto por demais, ficou incucado com aquilo e disse:
   - Esse fantasma tá meio mentiroso, sô. Onde já se viu o assombração do escravo Isidoro usar chapéu e capa? Tá parecendo o batman?
   - E num é que o minino Sandoval tem  mesmo  razão? - Concordou Manuel da porta do boteco.
   Bastou uma ponta de desconfiança pra todo mundo criar coragem e partir pra cima do assombração do Isidoro. O infeliz num teve tempo nem de piscar o olho antes de quase ser linchado pelo povo. Pra sua sorte, Remundão tomou partido e protegeu o infeliz que por sua vez, acusava o prefeito de mentiroso e de estar enganando o povo de Curralin.
   - Quem é esse cabra? - Perguntou Manuel se aproximando do dito escravo. O caboclo tava todo pintado de tinta preta e as roupas molambentas parecendo um mendigo.
   - Mas que diacho de cabra esquisito é esse?
   - S’impolga não, que a gente vai descobrir nesse minuto.
   - Por favor, não me machuquem! Eu tô falando a verdade. A culpa é do prefeito. - Acusou.
   - Quer dizer que o prefeito mandou você vir até aqui fingindo ser o escravo Isidoro? - Perguntou Remundão.
   - Eu não, o Tião.
   - O Tião mandou?!?
   - Não, o prefeito.
   - Eu já num tô intendeno é mais nadica de nada. Uma hora é o Tião, na outra é o prefeito. - Disse Zé das Candeia coçando a cabeça.
   - Vixi Manuel, num foi tu quem vendeu essa cachaça pra esse cabra não, foi?
   - Larga de sê Bobo, sô. - Defendeu o dono do boteco aperreado. - Eu nunca vi esse cabra da peste na minha frente, ôxente, e pro seu governo, a cachaça que o Zé traz é a melhor cachaça dessas redondeza.
   - É mió deixá esse cabra í s’imbora de uma vez, antes que ele apoquente ainda mais as ideia.
   - Cês vão deixá o coisa feia ir embora assim depois de me chamar de mentiroso?
   - Calma Tião, o infeliz tá desmiolado das ideia e num sabe nem o que tá falando. - Interveio Manuel.
   - O prefeito e esse daí que se diz cabra-macho tão enganando todo mundo. É tudo armação pra enganar vocês. - Gritou o falso fantasma.
   - Mas num foi tu que fingiu   ser   o   escravo   Isidoro? - Observou Chicão. 
   - Já que ninguém acredita em mim, então pode ficar com isso também, que  eu  vou  é  embora  desse  lugar maluco. - Disse o cabra entregando a sacolinha com os diamantes para o Tião e tomando rumo.
   - Mais diamante? - Estranhou ele. - Quanto mais, mió. - Completou Tião guardando a sacolinha no bolso sem entender nada e assim que se virou em direção ao palco onde esperava sua glória, todas as luzes do lugarejo se apagaram, virando uma penumbra só, enquanto uma ventania dos diabo começava a assoprar misteriosamente, fazendo o povo se proteger pelos cantos da praça.
   - Mas que diacho, sô. Será que ninguém vai me deixar receber minhas honras? – Praguejou Tião contrariado.
   Na mesma hora, surgiu um clarão repentino na entrada da praça e todos se voltaram para ver o que estava acontecendo. Lentamente a luz ia se aproximando e todos corriam desenfreados pelos becos com medo daquela coisa escabrosa.
   - Mas que disgrameira de coisa esquisita é essa agora? _ Perguntou Chicão tentando descobrir o que era aquilo no meio daquela estranha luz amarelada. O barulho de correntes sendo arrastadas pelas pedras que cobriam as ruas ficava cada vez mais alto e as sombras que se formavam nas fachadas das casas, ainda mais assustadoras. Bem que o povo fala, desgraceira pouca é bobagem e àquela altura, ninguém já nem respirava mais. Tião, coitado, o cabra parecia que já tinha morrido e não percebeu. Os olhos plantados naquela coisa do capeta que vinha se aproximando em sua direção, estavam tão esbugalhados que pareciam duas jabuticabas graúdas a ponto de cair do rosto pálido que nem cera. O infeliz já tinha molhado as calças e só esperava o pior, o que não demorou acontecer quando a criatura infernal chamou pelo seu nome. O caboclo se borrou todo.  Dona Zefinha que mal acordara do primeiro desmaio, se esborrachou de novo no mesmo lugar. Coitada, mais uma queda daquela e a dita empacotava de vez. Manuel parecia uma estátua com meio palmo de língua pra fora da boca e só num dispiguelou de vez ladeira abaixo porque não conseguia nem mesmo se mexer. Zezito não parava de resmungar o que nem ele mesmo sabia o que estava dizendo e fazer o que parecia ser o sinal da cruz com as duas mãos, enquanto o coisa-ruim se aproximava arrastando suas correntes. Assim que distinguiram o que era aquela figura dos infernos, quem não descambou pelos becos, certamente é porque já estava todo borrado. Um negão de dois metros de altura, 120 quilos, as roupas surradas das minas e sujas de sangue pelas chibatadas, correntes nos pés descalços e um candeeiro completamente enferrujado, porém aceso, acompanhado por dois escravos de menor porte que lhe iluminavam o caminho, parou a alguns metros do Tião “boca-de-fogo” e olhou-o por alguns segundos. Segundos? Aquilo parecia umas cem encarnações na vida do infeliz diante do filho do demônio. Quando o coisa-ruim do fantasma do Isidoro abriu a boca para falar o nome do Tião, o som parecia vir das profundezas do inferno.
   - Vosmicê buliu com minhas pedrinha e meu candieiro... e  eu  vim  aqui  pra  mode  pegá   eles   de   volta! - Disse.
   Tião coitado, tava mais petrificado do que as rochas da serra e mal conseguia respirar.
   - Ôôôô “seu” doutô fant...fantasma eu juro que não... peguei ne-nenhu-ma pedrica... eu ju-juro pela alma da min-minha mãezinha, que-que Deus a tenha... - Balbuciou Tião caindo de joelhos diante do fantasma do escravo. Bastou um gesto do coisa-ruim, para que os dois escravos que o acompanhava se aproximassem do cabra e retirasse de suas mãos o candeeiro e os diamantes.
   _ É mio vosmicê  imbora  antes  que  eu  me   aperreie. - Disse o escravo a Tião que não esperou ele falar de novo e num minuto se escafedeu feito fumaça. O escravo olhou demoradamente para o candeeiro que o Tião lhe entregou como se certificasse de que era o original. Sorriu assustadoramente satisfeito e se virou. Assim que os fantasmas pegaram seu rumo, o vento ficou ainda mais forte, apagando o candeeiro em suas mãos, e num segundo desapareceram na escuridão da noite com seus pertences, indo de volta para o cruzeiro da serra, onde a fraca luz amarelada se acendeu novamente.
   Assim que as lâmpadas dos postes voltaram a se acender, não havia mais ninguém nas ruas, exceto a turma do boteco do Manuel, que permaneciam plantados feito estátuas sobre a calçada. O resto não deixou nem os rastros, exceto claro, alguns sapatos sem os donos que não se sabe como, foram deixados para trás.
   Remundão, Zezito, Chicão, Sandoval e Manuel entraram no boteco em silencio e foram logo tomando umas boas talagadas de pinga para saírem do transe do assombração.
   - Alguém  pode  me   dizer   que   diacho   era   aquilo? - Perguntou Manuel ainda assustado.
   - Fala nada não Manuel e bota mais cachaça nesse copo. - Pediu Remundão.
   - Cês viru que coisa feia, mais danada dos inferno?
   - Eu num vi nadica de nada, tava tudo escuro.
   - Que diacho de ventania dos inferno foi aquela?
   - Foi só começar aquela ventania doida e todo mundo se escafedeu de medo.  Acho melhor a gente  passar  a  noite  aqui  e     ir  embora  de  manhã,  né? - Sugeriu Sandoval encolhido no canto da mesa.
   - Pelo menos ainda ficamos com o dinheiro das apostas, né Manuel? - Lembrou Zezito.
   - S’impolga não Zé. Isso é coisa de maldição e eu num quero nadica disso.
   - Deixa de ser bobo, Remundão. O Zé tem razão, nós apostamos no Tião e ele cumpriu o desafio, então o dinheiro é nosso, uai.
   - S’impolga não Manuel. - Insistiu Remundão vendo o amigo caminhar até atrás do balcão e retirar a caixa com o dinheiro das apostas. De repente, uma nova ventania começou a sacudir tudo, batendo portas e janelas e as luzes do boteco começaram a piscar até se apagarem de vez, deixando tudo escuro.
   - Que disgraceira de coisa esquisita foi essa, meu Jesus Cristin? - Perguntou Manuel colocando a caixa sobre a mesa.
   - Isso é coisa do Isidoro. - Disse Chicão quase se borrando de tanto medo, enquanto todos corriam para fechar as janelas e as portas que batiam sem parar.
   - Eu disse que isso era coisa amaldiçoada...
   - É mió a gente acender umas lamparina pra crariá, num é mesm? - Sugeriu Zezito acendendo uma binga que tirou do bolso da calça e, acompanhado por Remundão, logo encontraram a lamparina sobre o balcão.
   Assim que voltaram para a mesa, Sandoval botou as duas mãos sobre a cabeça assombrado e disse: - Cadê a  caixa  com  o  dinheiro  das  apostas  que  tava   aqui? - Gaguejou incrédulo olhando um monte de cinzas onde antes estava a caixa.           
   - Créindeuspade! A maldição do Isidoro queimou o dinheiro e agora vai queimar nós tudin, tudin! - Exclamou Chicão apavorado.
   - É mió a gente picá a mula. - Falou Zezito saindo de fininho e, um a um, foi todo mundo picando a mula dali. Escafederam-se cada um pro seu canto sem olhar para trás.
   Manuel, coitado, só voltou no boteco dois dias depois e nunca mais tocou no assunto do Isidoro. Ainda assim, há quem acredita que o coisa-ruim, assim que chegou ao cruzeiro, deu falta dos diamantes verdadeiros que ficaram no bolso do Tião e  voltou para buscá-los,  mas o infeliz não encontrou nem alma penada nas ruelas. Todo mundo havia se escafedido de medo e se trancado em casa, só saindo à rua de novo quando era dia claro.
   Nas noites frias em que o vento assopra pelo lugarejo, os mais acabrunhados dizem que é o assombração do escravo Isidoro perambulando ali pelos becos, em meio às sombras, a procura do tesouro roubado. Verdade ou não, o certo é que depois daquele acontecimento ninguém mais queria falar no desafio do Tião “boca-de-fogo” e o escravo Isidoro. O prefeito que sempre negou ter qualquer tramoia com Tião para atrair turistas para o distrito acabou desistindo de se candidatar a deputado, alegando razões pessoais. Tião por sua vez, escafedeu por alguns dias daquelas bandas e quando reapareceu estava fraco das ideia e não falava coisa com coisa. O pobre coitado perambulava pelos becos de Curralin sem rumo e ninguém sabe o que aconteceu com os diamantes do escravo que ficaram com ele no dia da ventania. O certo é que as pedrinhas do Isidoro desapareceram feito fumaça. Urucubaca ou não, ninguém parecia querer se lembrar da noite em que dona Zefinha estatelou desmaiada duas vezes no mesmo lugar por conta do escravo Isidoro. A prosa logo muda de rumo no boteco do Manuel e ninguém mais fala do dito cujo que assombrou até o cabra mais porreta de macho que já aparecera por aquelas bandas. Paulinho violeiro? Vixi Maria! O coitado escafedeu-se beco abaixo que nem um curisco e até hoje tá procurando a viola. Dizem que o caboclo pegou um tique nervoso no dedo que num para de tremer. Por um lado, é bom que agora o cabra tá tocando que é uma maravilha.
   Enfim, é nesse mundão de meu Deus, onde as pedras se ajuntam na serra e as águas se escorrem entre elas é que a vida se torna tão infinita quanto suas histórias, contadas de boca em boca, por cabras valentes e cheios de prosa, que mesmo nas horas que se arregam, não se fazem de rogado e dão-se por vencido. E não poderia ser diferente em Curralin, afinal, bastava um dedo de prosa no boteco do Manuel, para que Remundão, Zezito, Erildo, Rosa, Chicão, Erivaldo, Paulinho violeiro ou Sandoval apoquentassem as ideia de mais um caboclo distraído que perambulasse por aquelas bandas, começando assim mais uma história maluca e assombrosa, dessas de botá medo até mesmo no cabra mais valente que ande por sobre essas terras...
   E eu aqui... só assuntano.                 

                               
                                                                   Fim    

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