domingo, 17 de junho de 2018

Aparições e Mineirices do Isidoro

Capítulo - 01
Quem conta um conto...

Não há neste mundão de meu Deus, alguém que
não tenha ouvido falar de alguma estória maluca e até
mesmo assombrosa, dessas capaz de “botá” medo no
cabra mais valente que anda sobre essas terras. E olha
que tem muito cabra macho por aí, que aceita qualquer
desafio pra mostrar sua coragem, mas na hora
mesmo de agarrar o garrote pelo chifre, o pobre coitado
se desculpa daqui, se desculpa dali, treme na
base e logo põe a perna no mundo d’uma carreira só,
pra nunca mais voltar.
E é assim que a estória vai tomando rumo. Um
conta daqui, outro aumenta acolá, o que não entendeu direito pra não fazer feio floreia um muncadinho
daqui e dali, e assim o medo vai se espalhando como fogo no vento, intimidando até o cabra mais valente
que, pra não desmerecer a fama, se enrosca numa desculpa esfarrapada e queima no serrado. Foi justamente
assim que aconteceu com Tião “boca-de-fogo”. Rapagão forte e culto que acabara de apear da jardineira
no pequeno distrito de Curralin, vindo da cidade grande para passar uns tempos na casa de uns parentes,
que tinha acabado de descobrir que existiam. Parrudo e metido a sabe-tudo, foi logo botando banca 
pra cima do povo humilde do lugarejo, dizendo que era filho do Coronel das tal “força armada”, sobrinho
do Capitão não sei das quantas, faixa preta de “jujits”, com sotaque acaipirado e um monte de lero-lero
mais.
Tão logo apareceu por aquelas bandas, foi logo dar o ar de sua graça no bar do Manuel, pra mostrar porque
tinha o apelido de “boca-de-fogo”. Não teve bebida que o fizesse de rogado e nem cabra que o
acompanhasse numa sentada. Melhor pro Manuel que se empolgava todo quando via o Tião adentrar sua
pocilga. Corria todo abobalhado para atrás do balcão e tiçava logo o torresmo na panela, preparando o tira gosto.
- S’impolga não, Manuel. - Dizia Remundão, velho porreta de vivência. Matuto esperto que nem uma
raposa, capaz de reconhecer um fala mansa só pelo jeito de pisar. - Esse ainda vai dar muito nó no vento.
- Ô Remundão, cabra macho que nem que esse tá pra nascer... - Defendia o dono da pocilga com orgulho.
- Inda de quê, o que ele bebe numa sentada é mais do que vendo numa semana intirinha, homi.
- Oxalá, se ganha pelo que vende quem sou eu para não querer vê-lo rico.
- É isso mesm. Ta tudinho anotado na minha cardeneta. - Rebateu Manuel sacolejando um pequeno
bloco de anotações, enquanto abria um largo sorriso
de poucos dentes.
- S’impolga não, homem, ou vai acabar com uma baita dor de cabeça pela ressaca do que esse cabra
bebe! - Insistiu Remundão em vão. Nada que dissesse ia fazer com que Manuel mudasse de ideia, pois estava
por demais satisfeito com o novo cliente. Mesmo assim, não custava tentar. Coitado. Não imaginava a surpresa
que o aguardava mais dia, menos dia. Quando menos esperasse, ia dar com os burro n’água. Mas,
quem afinal, não vivia de surpresas, não é? A vida era imprevisível. Quanto mais se faz planos, menos se
chega aonde quer e assim, vai-se vivendo neste mundão de meu Deus.
Até mesmo a chegada de Tião “boca-de-fogo” em Curralin era cercada de mistérios. Em busca de parentes
que nem ele mesmo conhecia, surpreendeu a todos no local. Ninguém do lugarejo havia acreditado
muito naquele negócio de árvore genealógica que o Tião rabiscava num papel, tentando provar que ele era
parente de alguém dali, só por que respondia pelo mesmo sobrenome do Zé da Pitanga, grande fazendeiro
daquelas bandas. Porém, que mal poderia fazer sua acolhida ali por alguns dias como parente de verdade?
Parente ou não, o rapaz até que tinha seu lado bom. Em poucas horas já era o cabra mais conhecido
da redondeza e não havia quem não debandasse pro mesmo lado da rua em que ele estava só pra cumprimentá-
lo. Entrava aqui, saía ali, comprava fiado em tudo quanto era canto e até se tornou alvo dos olhares
mais afoitos de uma ou outra cabrita fogosa, que com ele cruzava pelos becos de pedras.
Não pensem que com isso ele se desmanchava em galanteios. O “boca-de-fogo” era esperto por demais
e pisava leve por onde passava. Tratava logo de virar o rosto como se não percebesse as tentações do perturbador
e logo arranjava alguém do outro lado da ruela para cumprimentar. Sabia lá Deus, as verdadeiras
intenções que o acompanhavam.
Certa vez, o viram saindo da casa de Dona Ambrosina, depois que a cidade entrou na penumbra da
noite. Diziam as más-línguas, que a distinta senhora, de meia idade, bonitona, viúva enxuta, atraía os viajantes
e outros que por ali se aventuravam, preparando-lhes uma verdadeira noite caliente, de puro
prazer, e o cabra tinha que ser muito macho para dar conta de todas as suas pervertidas maluquices, sem
correr porta afora no meio da noite, de calça arriada. Se resistisse aos caprichos da megera, era-lhe oferecida
a virgindade da filha, menina moça, cabritinha nova que jamais soubera distinguir a vida além da
adolescência, já que morrera há mais de vinte anos. Só não souberam dizer, se quando saiu da casa da distinta
viúva, Tião “boca-de-fogo” trazia as calças na mão ou se estava dentro delas, mas o certo é que devia
ser apenas mais uma estória que ninguém sabe quem contou primeiro e como era de se esperar, o
coitado negou tudo e até jurou de pé-junto. Mas, quem somos nós para duvidar das palavras de um cabra
tão macho que nem ele, não é mesmo? O melhor era deixar o dito pelo não dito e tocar a boiada em
frente.
Assim era Curralin... Um lugarejo incrustado na serra do Espinhaço, que guardava com seu povo, toda a
sorte de histórias deixadas pelos garimpeiros e escravos que viveram por aquelas bandas, em tempos já
quase esquecidos, pelos que ainda insistiam em revirar a terra em busca de diamantes. Era uma infinidade
de causos descabidos que essa gente contava que numa só noitada de prosa, conseguiam desenterrar
metade dos defuntos e fazer com que tudo o que era assombração e coisa ruim deixassem suas sepulturas,
se é que tinham, devido ao estado de abandono do cemitério, para vir apoquentar a vida dos cabras de
ideia fraca.
Sina ou falta do que fazer bastava uma lua mais abastada aparecer no alto para que os cabra começasse
com suas histórias medonhas. E olha que tinha caboclo que jurava de pé-junto que era tudinho verdade,
sem tirar nem pôr. Mas Tião “boca-de-fogo” não era homem de se intimidar com essas coisas de fantasma,
assombração e sei lá mais o quê. Era cabra-macho e cabra que é macho de verdade não tem medo
de nada.
- Ocês é um bandifrôxo, isso é o que eu sei. - Zombou ele peitudo e até desafiou os “coisa ruim” que
apareciam no cemitério nas noites de lua cheia. Remundão que ouvia tudo calado no seu canto meteu
o cigarrinho de palha na boca e se aproximou da roda de amigos assentados na porta do boteco do
Manuel, soltando logo uma baforada fedorenta antes de se sentar sobre os calcanhares e chamar a atenção
do rapaz.
- S’impolga muito não viu, meu rapaz? É melhor tu tomar cuidado, pois quem mexe com essas “coisa”
acaba castigado, dando com os burro n’água..
- Quero ver a brabeza desse estrupício é na frente do esprito de dona Zefinha. - Desafiou alguém.
- Rapá, mas o cabra aqui num disse que é arretado de macheza, sô? Intão, vamo vê ele disafiá os esprito
do cemitério, uai. - Falou Zezito, desafiando ainda mais a coragem de “boca-de-fogo”.
- É isso mesmo, Tião, tu num é cabra-macho sem base?
- E num vô? E pra provar que não tenho medo de nadinha disso aí que ocês tão falando, vou sozinho
no cemitério à meia noite e quero ver se esse tal espírito de dona Zefinha tem coragem de aparecer pra
mim. - Gabou Tião batendo com a mão no peito, desafiador.
- S’impolga não, que isso é coisa séria, meu rapaz. - Insistiu Remundão.

                                                       ... Continua na próxima semana!

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